Profª de Filosofia e Sociologia da Rede Estadual de Goiás desde 2010.
"Quem educa com carinho e seriedade, educa para sempre".
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[2ª Série] Filosofia: Aristóteles

domingo, 9 de setembro de 2012

O mundo de Sofia
De Jostein Gaarder

ARISTÓTELES

FILÓSOFO E CIENTISTA

Querida Sofia! Certamente você ficou impressionada com a teoria das idéias, de Platão. E você não é a primeira. Não sei se você aceitou tudo sem maiores problemas, ou se tem algum comentário crítico a fazer. Mas  se você fez críticas à teoria de Platão, saiba que estas mesmas críticas já foram feitas por Aristóteles (384-322 a.C.). Durante vinte anos ele foi aluno da Academia de Platão.

Aristóteles não nasceu em Atenas. Ele era natural da Macedônia e veio para a Academia quando Platão tinha sessenta e um anos. Seu pai  era um médico de renome; um cientista da natureza, portanto. Este pano de fundo já diz alguma coisa sobre o projeto filosófico de Aristóteles. Seu maior interesse estava justamente na natureza viva. Ele não foi apenas o último grande filósofo grego; foi também o primeiro grande biólogo da Europa.

Exagerando um pouco, podemos dizer que Platão estava tão mergulhado nas formas eternas, no mundo das “idéias”, que quase não registrou as mudanças da natureza. Aristóteles, ao contrário, interessava-se justamente pelas mudanças, por aquilo que hoje chamamos de processos naturais.

Exagerando mais ainda, podemos dizer que Platão se apartou do mundo dos sentidos e que só percebia muito superficialmente tudo aquilo que vemos ao nosso redor. (É que ele queria escapar da caverna para espiar o eterno mundo das idéias!) Aristóteles fez exatamente o contrário: ele saiu ao encontro da natureza e estudou peixes e rãs, anêmonas e papoulas.

Você bem poderia dizer que enquanto Platão usou apenas sua razão, Aristóteles – ao contrário – usou também seus sentidos. Mas há nítidas diferenças entre eles, até mesmo na forma de escrever. Enquanto Platão era poeta e criador de mitos, os escritos de Aristóteles são sóbrios e pormenorizados como os verbetes de uma enciclopédia. Em compensação, muito do que ele escreveu estava baseado em estudos naturais realizados com extrema diligência.

Registros da Antigüidade dão conta de não menos que cento e setenta títulos assinados por Aristóteles. Destes, quarenta e sete chegaram até nossos dias. Não se tratava de livros completos. A maior parte dos escritos de Aristóteles compõe-se de apontamentos feitos para suas aulas. Também na época de Aristóteles, a filosofia era essencialmente uma atividade oral.

A importância de Aristóteles para a cultura  européia está também no fato de ele ter criado uma linguagem técnica usada ainda hoje pelas mais diversas ciências. Ele foi o grande sistematizador, o homem que fundou e ordenou as várias ciências.

Como Aristóteles escreveu sobre todas as ciências, vou me limitar  a tratar aqui sobre algumas das áreas mais importantes. E como me detive tanto em Platão, quero falar a você primeiramente sobre os argumentos de Aristóteles contra a teoria das idéias de Platão. Na seqüência, veremos como ele formulou sua própria filosofia natural. Afinal, Aristóteles resumiu o que os filósofos naturais haviam dito antes dele. Veremos também como ele tenta colocar em ordem nossos conceitos e funda a lógica como ciência. Por fim, vou falar um pouco sobre a visão que Aristóteles tinha do homem e da sociedade.

Se você aceita este roteiro, então só nos resta arregaçar as mangas e começar.

AS IDÉIAS NÃO SÃO INATAS

Assim como os filósofos que o antecederam, Platão também queria encontrar algo de eterno e de imutável em meio a todas as mudanças. Foi assim que ele chegou às idéias perfeitas, que estão acima do mundo sensorial. Além disso, Platão considerava essas idéias mais reais do que os próprios fenômenos da natureza. Primeiro vinha  a idéia “cavalo” e depois todos os cavalos do mundo dos sentidos, trotando como sombras projetadas sobre a parede de uma caverna. A idéia “galinha” vinha, portanto, antes da galinha e do ovo.

Aristóteles achava que Platão tinha virado tudo de cabeça para baixo. Ele concordava com seu mestre em que o exemplar isolado do cavalo “flui”, passa, e que nenhum cavalo vive para sempre. Ele também concordava que, em si, a forma do cavalo era eterna e imutável. Mas a “idéia” cavalo não passava para ele de um conceito criado pelos homens e para os homens, depois de eles terem visto um certo número de cavalos. A “idéia” ou a “forma” cavalo não existia, portanto, antes da experiência vivida. Para Aristóteles, a “forma” cavalo consiste nas características do cavalo, ou seja, naquilo que chamaríamos de espécie.

Vou explicar melhor: Aristóteles entendia por “forma” aquilo que todos os cavalos têm em comum. E aqui a imagem da fôrma de fazer broas perde a sua validade, pois as fôrmas de fazer broas existem independentemente de cada broa em particular. Aristóteles não acreditava que houvesse na natureza um armário, por assim dizer, com fôrmas desse tipo. Para ele, as “formas” estavam dentro das próprias coisas; as “formas” das coisas eram suas características próprias.

Aristóteles também não concordava com Platão no que se refere ao fato de a “idéia” galinha vir antes da galinha propriamente dita. Aquilo que Aristóteles chama de a “forma” galinha está em todas as galinhas e são as características que distinguem as galinhas. Por exemplo, o fato de elas botarem ovos. Assim, a galinha em si e a “forma” galinha são duas coisas tão inseparáveis quanto o corpo e a alma.

Com isto resumimos a essência das críticas de Aristóteles à teoria das idéias de Platão. Mas você deve atentar bem para o fato de estarmos falando de uma dramática mudança de pensamento. Para Platão, o grau  máximo de realidade está em  pensarmos com a razão. Para Aristóteles, ao contrário, era evidente que o grau máximo de realidade está em percebermos ou sentirmos com os sentidos. Platão considera tudo o que vemos ao nosso redor na natureza meros reflexos de algo que existe no mundo das idéias e, por conseguinte, também na alma humana.

Aristóteles achava exatamente o contrário: o que existe na alma humana nada mais é do que reflexos dos objetos da natureza.  Para Aristóteles, Platão foi prisioneiro de uma visão mítica do mundo, que confundia as idéias dos homens com a realidade do mundo.

Aristóteles nos chama a atenção para o fato de que não existe nada na consciência que já não tenha sido experimentado antes pelos sentidos. Platão poderia ter dito que não existe nada na natureza que não tivesse existido antes no mundo das idéias. Aristóteles achava que, desta forma, Platão estava duplicando o número de coisas. Ele tinha explicado o exemplar isolado do cavalo fazendo referência à “idéia” cavalo. Mas que tipo de explicação é esta, Sofia? Quero dizer, de onde saiu a “idéia cavalo”? Será que, nessa linha de  raciocínio, não poderia existir ainda um terceiro cavalo, de que a “idéia” cavalo não fosse senão uma imitação?

Aristóteles achava que todas as nossas idéias e pensamentos tinham entrado em nossa consciência através do que víamos e ouvíamos. Mas nós também temos uma razão inata. Temos uma capacidade inata de ordenar em diferentes grupos e classes todas as nossas impressões sensoriais. É assim que surgem conceitos como os de “pedra”, “planta”, “animal” e “homem”. É assim que surgem os conceitos de “cavalo”, “lagosta” e “canarinho”.

Aristóteles não negava que o homem tivesse uma razão inata. Muito pelo contrário: para ele, a razão era precisamente a característica  mais importante do homem. Só que nossa razão permanece “vazia” enquanto não percebemos nada. Uma pessoa, portanto, não possui “idéias” inatas.

AS FORMAS SÃO AS CARACTERÍSTICAS DAS COISAS

Após ter marcado bem a sua posição em relação à teoria das idéias de Platão, Aristóteles constatou que a realidade consiste em várias coisas isoladas, que representam uma unidade de forma e substância. A “substância” é o material de que a coisa se compõe, ao passo que a “forma” são as características peculiares da coisa.

Uma galinha bate as asas na sua frente, Sofia. A “forma” da galinha é precisamente o bater de asas, o cacarejar e a postura de ovos. Assim, a “forma” da galinha são as características próprias da espécie. Em outras palavras,  a “forma” da galinha é aquilo que ela  faz. Quando a galinha morre – e, portanto, pára de cacarejar -, a “forma” da galinha também deixa de existir. A única coisa que resta é a “substância” da galinha (que triste, não, Sofia?). Mas aquilo não é mais uma galinha.

Como já disse, Aristóteles se interessava  pelas mudanças da natureza. A substância sempre encerra a possibilidade de vir a adquirir determinada forma. Podemos dizer que a substância se esforça por concretizar uma possibilidade que lhe é inerente. Assim, para Aristóteles, toda mudança observada na natureza é uma transformação, ocorrida na substância, de uma possibilidade para uma realidade.

Sim, sim, Sofia… vou explicar melhor. E  vou tentar fazê-lo contando a você uma história engraçada. Era uma vez um escultor que vivia debruçado sobre um grande bloco de granito.Todos os dias ele dava umas batidinhas naquela pedra amorfa. Um dia, um jovem veio visitá-lo. – O que você está procurando? – perguntou o jovem. – Espere e verá – respondeu o escultor. Depois de alguns dias o jovem voltou e o escultor tinha “tirado da pedra” um belo cavalo. Surpreso, o jovem ficou um longo tempo parado diante do cavalo, até que perguntou ao escultor: - Como é que você sabia que ele estava lá dentro?

Sim, como é que ele sabia? De certa forma, o escultor tinha visto a forma do cavalo no bloco de granito, pois precisamente este bloco de granito encerrava a possibilidade de se transformar num cavalo. Aristóteles achava que todas as coisas da natureza encerram a possibilidade de concretizar determinada forma.

Vamos voltar ao ovo e à galinha. Um ovo de  galinha encerra a possibilidade de se transformar numa galinha. Isto não significa que todos os ovos de galinha chegam a se transformar em galinhas; afinal, muitos deles acabam na mesa do café da manhã como ovos fritos, mexidos ou como omelete, sem que a forma inerente ao ovo chegue a se concretizar. Do mesmo modo, porém, também é claro que um ovo de galinha jamais irá se transformar num ganso. Esta possibilidade não é inerente ao ovo de galinha. A forma de uma coisa, portanto, diz tanto sobre as suas possibilidades quanto sobre suas limitações.

Quando Aristóteles fala de “forma” e “substância”, ele não está pensando apenas em organismos vivos. Assim como a “forma” de uma galinha é cacarejar, bater as asas e pôr ovos, a “forma” de uma pedra é voltar ao chão quando atirada para o alto. Assim como a galinha não pode deixar de cacarejar, também a pedra não consegue deixar de cair no chão. É claro que você pode apanhar uma pedra e jogá-la bem para o alto, mas como é da natureza da pedra voltar a cair no chão, você não vai conseguir jogá-la na Lua. (Tome cuidado ao fazer este experimento, pois a pedra pode se vingar. Ela pode querer voltar para a Terra o mais rapidamente possível, e pobre daquele que estiver no seu caminho!)

A CAUSA FINAL, OU DA FINALIDADE

Antes de deixarmos de lado o fato de que todas as coisas vivas e mortas têm uma forma que diz alguma coisa sobre as possibilidades dessas coisas, devo acrescentar ainda que Aristóteles tinha uma notável visão das relações de causa e efeito na natureza.

No nosso dia-a-dia, quando falamos das “causas” disso ou daquilo, referimo-nos a como as coisas acontecem. A vidraça se quebra, porque Peter atirou uma pedra. Um sapato passa a existir porque um sapateiro costurou alguns pedaços de couro. Mas Aristóteles acreditava que na natureza havia diferentes tipos de causas. É importante saber, sobretudo, o que ele entendia por aquilo que chamou de causa da finalidade.

No caso da janela quebrada, também seria pertinente perguntar por que Peter atirou a pedra. Estamos perguntando, portanto, que intenção ele tinha, que objetivo ele perseguia. Também não há dúvida de que a intenção ou a finalidade desempenham um papel importante no caso da manufatura do sapato. Mas Aristóteles também partia de uma tal causa da finalidade para explicar alguns processos vivos da natureza. Vamos citar apenas um exemplo.

Por que chove, Sofia? Na certa você aprendeu na escola que chove porque o vapor d’água esfria nas nuvens e condensa na forma de gotas de chuva que, por causa da força da gravidade, caem no chão. Aristóteles também teria acenado com a cabeça em sinal de concordância.

Mas ele teria acrescentado que, até agora, você só citou três causas. A “causa substancial” ou causa material, que é o fato de o vapor d’água em questão (as nuvens) estar ali bem na hora em que o ar esfriou; a “causa atuante” ou causa eficiente, que é o fato de o vapor d’água esfriar, e a  causa formal, que é o fato de ser inerente à “forma” ou  à natureza da água cair no chão. Se você não tivesse dito mais nada, Aristóteles teria acrescentado que chove  porque as plantas e os animais precisam da água da chuva para crescer. É isto que ele chama de a causa final, ou da finalidade.

Como você pode ver, de repente Aristóteles atribuiu às gotas de chuva uma espécie de tarefa vital, um “propósito”. Nós provavelmente inverteríamos as coisas e diríamos que as plantas crescem porque há umidade. Você está vendo a diferença, Sofia? Aristóteles acreditava que  por trás de tudo na natureza havia um propósito, uma finalidade. Chove para que as plantas cresçam e as laranjas e as uvas possam crescer e servir de alimento aos homens.

Hoje em dia a ciência não pensa mais assim. Dizemos que os alimentos e a água são condições para que homens e animais possam existir. Sem essas condições nós não existiríamos. Mas não é intenção das laranjas ou da água nos alimentar.

No que se refere à sua teoria das causas, podemos nos sentir tentados a afirmar que Aristóteles se enganou. Mas não vamos nos apressar demais. Muitas pessoas acreditam que Deus criou o mundo para que homens e animais possam nele viver. Deste ponto de vista, podemos naturalmente afirmar que a água corre nos rios porque homens e animais precisam de água para viver. Só que neste caso estamos falando do propósito ou da intenção de Deus. Não que as gotas de chuva ou a água dos rios gostem de nós e queiram nos proteger.

LÓGICA

A diferença entre “forma” e “substância” também é muito importante quando Aristóteles descreve como o homem reconhece as coisas do mundo. Quando reconhecemos as coisas, nós as ordenamos em diferentes grupos ou categorias. Por exemplo, vejo um cavalo hoje, outro amanhã  e outro depois de amanhã. Os cavalos não são exatamente iguais, mas há alguma coisa que é comum a todos os cavalos. E esta coisa que é comum a todos os cavalos é a “forma” do cavalo. Tudo  o que é distintivo ou individual pertence à “substância” do cavalo.

E assim vamos nós pelo mundo, colocando as coisas em gavetas diferentes. Colocamos vacas no curral, cavalos no estábulo, porcos no chiqueiro e galinhas no galinheiro. O mesmo acontece quando Sofia Amundsen limpa o seu quarto. Ela coloca os livros na estante, os cadernos na mochila e as revistas na gaveta da escrivaninha. As roupas são cuidadosamente dobradas: peças íntimas são colocadas numa gaveta, malhas de lã em outra e meias em outra. Veja que fazemos o mesmo nas nossas cabeças: estabelecemos a diferença entre coisas que são feitas de pedra, coisas dealgodão e coisas de borracha. Distinguimos coisas vivas de coisas mortas, e “plantas” de “animais” e de “seres humanos”.

Você está acompanhando, Sofia? Aristóteles queria, portanto, arrumar o quarto da jovem natureza. Ele tentou mostrar que todas as coisas na natureza pertenciam a diferentes grupos e subgrupos. (Hermes é um ser vivo. Ou melhor, um animal. Ou melhor, um animal vertebrado. Ou melhor, um mamífero. Ou melhor, um cachorro. Ou melhor, um labrador. Ou melhor, um labrador macho.)

Vá até o seu quarto, Sofia. Pegue qualquer objeto que estiver no chão. Qualquer um, não importa. Você verá que o objeto que você pegou está inserido numa ordem superior. Quando encontramos uma coisa que não conseguimos classificar, levamos um verdadeiro choque. Por exemplo, se você se depara com uma pequena coisa e não sabe dizer ao certo se esta coisa pertence ao reino animal, vegetal ou mineral, acho que você não ousaria tocá-la.

Reino animal, vegetal ou mineral. Foi isto o que eu disse. Estou pensando naquele jogo de salão em que um pobre coitado é mandado para fora da sala enquanto os outros ficam pensando no que o pobre coitado terá de adivinhar quando voltar. Os outros decidem pensar em Mons, o gato do vizinho que nessa hora está no jardim. Então o pobre coitado entra de novo na sala e começa a adivinhar. Os outros só podem responder com “sim” e “não”. Se o pobre coitado for um bom aristotélico – e neste caso não seria um pobre coitado -, o diálogo entre ele e os demais bem que poderia ser este: É concreto? (Sim!) Pertence ao reino mineral? (Não!) É vivo? (Sim!) Pertence ao reino vegetal? (Não!) É um animal? (Sim!) É um pássaro? (Não!) É um mamífero? (Sim!) Isto é tudo sobre o bicho? (Sim!) É um gato? (Sim!) É Mons? (Siiiimm! Risadas…).

Foi Aristóteles, portanto, quem inventou esta brincadeira. A Platão atribuímos a honra de ter inventado o “esconde-esconde”; e a Demócrito, a honra de ter inventado as pedrinhas de Lego.

Aristóteles foi um organizador, um homem extremamente meticuloso, que queria pôr ordem nos conceitos dos homens. De  fato, ele também fundou a ciência da  lógica, e estabeleceu uma série de normas rígidas para que conclusões ou provas pudessem ser consideradas logicamente válidas. Vamos ver um exemplo: se constato primeiramente que “todas as criaturas vivas são mortais” (primeira premissa), e depois constato que “Hermes é uma criatura viva” (segunda premissa), então posso tirar a elegante conclusão de que “Hermes é mortal”.

O exemplo nos mostra que a lógica de Aristóteles trata da relação entre conceitos; neste caso, “criatura viva” e “mortal”. Mesmo que tenhamos que concordar com Aristóteles em que a conclusão tirada é cem por cento correta, temos de admitir que ele não nos diz nada de novo. Afinal de contas, nós já sabíamos que Hermes é “mortal”. (Ele é um cachorro, e todos os cachorros são “criaturas vivas” e, portanto, “mortais” por oposição às pedras da montanha.) Sim, Sofia, já sabíamos disso. Mas nem sempre a relação entre grupos ou coisas nos parece tão evidente. De vezem quando pode ser necessário pôr certa ordem em nossos conceitos.

Vou citar apenas um exemplo: será que realmente é verdade que um filhotinho de rato, minúsculo, pode mamar tal como um carneiro ou um porco? Isto parece muito estranho, mas vamos raciocinar um pouco: ratos não botam ovos (onde é que já se viu um ovo de rato?). Isto significa que seus filhotes são criaturas que já nascem vivas, exatamente  como os porcos e os carneiros.

Chamamos de mamíferos os animais que dão à luz filhotes vivos, e os mamíferos são animais que mamam o leite de suas mães. Chegamos, assim, aonde queríamos. A resposta já estava dentro de nós, só que precisávamos primeiro pensar um pouco. Na pressa tínhamos nos esquecido de que os ratos realmente mamam o leite de suas mães. Talvez isto se deva ao fato de nós nunca termos visto um ratinho mamando. E isto, por sua vez, se explica pelo fato de que os ratos têm um pouco de vergonha dos homens quando estão amamentando seus filhotes.

A ESCADA DA NATUREZA

No seu projeto de “colocar ordem” na vida, Aristóteles chama a atenção primeiramente para o fato de que tudo o que ocorre na natureza pode ser dividido em dois grupos principais. De um lado, temos as  coisas inanimadas tais como pedras, gotas de água e torrões de terra. Essas coisas não encerram em si uma  potencialidade de transformação. Segundo Aristóteles, elas só podem se transformar sob a ação de agentes externos. De outro lado, temos as criaturas vivas, que possuem dentro de si uma potencialidade de transformação.

Para Aristóteles, a natureza progride paulatinamente das coisas inanimadas para as criaturas vivas. Ao reino das coisas inanimadas segue-se primeiramente o reino das plantas, que, “em relação ao reino das coisas inanimadas, parece quase animado, e em relação ao reino dos animais parece quase inanimado”. Finalmente, Aristóteles divide o reino das criaturas vivas em dois subgrupos, o dos animais e o do homem.

Não podemos deixar de reconhecer que esta divisão, apesar da nítida insegurança em relação às plantas, é clara e simples. Há uma grande diferença entre as coisas vivas e as não vivas. Também entre as plantas e os animais existe uma enorme diferença; por exemplo, entre uma rosa e um cavalo. E também quero dizer que há uma grande diferença entre um cavalo e um homem. Mas onde estão exatamente essas diferenças? Será que você é capaz de me responder?

Infelizmente não tenho tempo de esperar que você escreva a sua resposta e a coloque num envelope cor-de-rosa junto com um torrão de açúcar [P. 75: “No momento seguinte, um enorme cão labrador entrou no esconderijo vindo do lado da floresta. Na boca ele trazia um grande envelope amarelo, que deixou cair aos pés de Sofia. (…) Aquele era o mensageiro! Sofia respirou aliviada. Por isso é que as bordas dos envelopes estavam sempre úmidas. Por isso, também, é que os envelopes tinham aquelas marcas. Marcas de dentes, agora ela sabia. Como ela não tinha pensado nisso antes? Agora sim fazia sentido a orientação que o filósofo lhe dera de colocar no envelope um docinho ou um torrão de açúcar quando quisesse mandar uma carta para ele.”]. Por isso prefiro responder eu mesmo e agora. Quando Aristóteles divide os fenômenos da natureza em diferentes grupos, ele parte das características das coisas; melhor dizendo, daquilo que elas são capazes ou daquilo que elas fazem.

Tudo o que vive (plantas, animais e pessoas) tem a capacidade de se alimentar, crescer e se multiplicar. Os animais e os homens têm, além disso, a capacidade de perceber o mundo que os cerca e de se locomover na natureza. E todas as pessoas têm, somada a tudo isto, a capacidade de pensar – ou melhor, a capacidade  de ordenar suas impressões sensoriais em diferentes grupos e classes. Desta forma, não existem na natureza divisões realmente estanques. Podemos perceber uma transição gradual de vegetais simples para plantas mais complexas, de animais simples para animais mais complexos. Bem no alto desta “escada” está o homem, que, para Aristóteles, vive a plenitude da vida da natureza. O homem cresce e se alimenta como as plantas, tem sentimentos e capacidade de locomoção como os animais, mas possui além de tudo isto uma característica muito especial, que só ele tem: a capacidade de pensar racionalmente.

Por isso, Sofia, o homem possui uma centelha da razão divina. Isso mesmo… eu disse “divina”. Em algumas passagens, Aristóteles explica que deve haver um Deus que colocou em marcha todos os movimentos da natureza. E, assim, Deus passa a assumir o cume absoluto da escada da natureza.

Para Aristóteles, os movimentos das estrelas e dos planetas comandavam os movimentos aqui na Terra. Mas devia haver alguma coisa que fazia os corpos celestes se movimentarem. Esta coisa Aristóteles chamava de  o primeiro impulsor, ou  Deus. Este primeiro impulsor não se movimenta, mas é a causa primordial de todos os movimentos dos corpos celestes e, por conseqüência, dos movimentos na natureza.

ÉTICA

Vamos voltar ao homem, Sofia. Para Aristóteles, a “forma” do homem se define por ele possuir tanto uma “alma vegetal” quanto uma “alma animal” e uma “alma racional”. E Aristóteles pergunta: como o homem deve viver? Do que o homem precisa para viver uma boa vida? Posso responder resumidamente: o homem só é feliz se puder desenvolver e utilizar todas as suas capacidades e possibilidades.

Aristóteles acreditava em três formas de felicidade: a primeira forma de felicidade é uma vida de prazeres e satisfações. A segunda forma de felicidade é uma vida como cidadão livre, responsável. E a terceira forma de felicidade é a vida como pesquisador e filósofo. Aristóteles sublinha o fato de que é preciso  integrar essas três formas a fim de que o homem possa levar uma vida realmente feliz. Ele recusa, portanto, toda e qualquer decisão unilateral. Se Aristóteles vivesse hoje, talvez ele dissesse que a vida de uma pessoa que só cultiva o corpo é tão unilateral – e portanto tão lacunosa – quanto a vida de outra que só usa a cabeça. Ambos os extremos são expressões de um modo errado de viver a vida.

Também no que concerne às virtudes, Aristóteles chama a atenção para um “meio-termo de ouro”. Não devemos ser nem covardes, nem audaciosos, mas  corajosos. (Coragem de menos significa covardia e coragem demais significa audácia.) Também não devemos ser nem avarentos, nem extravagantes, mas  generosos. (Generosidade de menos é avareza e generosidade demais é extravagância.)

O mesmo vale para a alimentação. Comer de menos é perigoso, mas comer demais também o é. A ética de Platão e de Aristóteles lembra a ciência médica grega: só através do equilíbrio e da moderação é que podemos nos tornar pessoas felizes ou “harmônicas”.

POLÍTICA

A visão de sociedade de Aristóteles também expressa essa necessidade de moderação, esse abandono do exagero. Ele chama o homem de um “ser político”. Aristóteles acha que sem a sociedade ao nosso redor não somos pessoas no verdadeiro sentido do termo. Nesse contexto, a família e a cidade satisfazem nossas necessidades vitais primárias, como a comida e o calor, o casamento e a criação de filhos. Mas a forma mais elevada do convívio humano, para Aristóteles, só pode ser o Estado.

E aqui surge a pergunta de como o Estado deve ser organizado. (Você ainda se lembra do Estado dos filósofos de Platão?) Aristóteles cita diversas boas formas de Estado. Uma delas é a monarquia, ou seja, aquela em que há um único chefe de Estado. Mas para que esta forma de Estado seja boa, ela não pode degenerar em “tirania”, na qual o único soberano comanda e dirige o Estado em proveito próprio. Outra boa forma de Estado é a aristocracia. Aqui, um grupo maior ou menor de soberanos governa o Estado. Esta forma de Estado deve cuidar para não acabar virando o governo de uns poucos, que dirigem o Estado em prol de seus próprios interesses. Seria mais ou menos o que chamaríamos hoje de “oligarquia”. Uma terceira boa forma de Estado é a democracia. Mas também esta forma de Estado tem o seu lado negativo. Uma democracia pode facilmente desvirtuar e se transformar no chamado domínio da plebe. (Ainda que o tirano Hitler não tivesse se tornado o chefe de Estado da Alemanha, uma multidão de pequenos nazistas teria conseguido instituir um terrível “domínio da plebe”.)

A VISÃO DA MULHER

Para concluir, precisamos dizer alguma coisa sobre a visão que Aristóteles tinha da mulher. Infelizmente, ela não era tão animadora quanto a de Platão. Fundamentalmente, Aristóteles achava que faltava alguma coisa à mulher. Para  ele, a mulher era “um homem incompleto”. Na reprodução, a mulher é passiva e receptora, enquanto o homem é ativo e produtivo. Por esta razão é que – segundo Aristóteles – o filho do casal herdava apenas as características do pai. Aristóteles acreditava que todas as características da criança já estavam presentes no sêmen do pai. Para ele, a mulher era apenas o solo que acolhia e fazia germinar a semente que vinha do “semeador”, ou seja, do homem. Para colocarmos a coisa em termos  verdadeiramente aristotélicos: o homem dá a “forma”; a mulher, a “substância”.

É surpreendente e mesmo lamentável que um homem como Aristóteles, tão inteligente para tantos assuntos, pudesse se enganar desse jeito no que se refere à relação entre os sexos. Mas isto nos mostra duas coisas: primeiro, que Aristóteles não deve ter tido muita experiência prática na vida com mulheres e crianças; em segundo lugar, que uma série de coisas pode dar errado quando são apenas os homens que reinam supremos na filosofia e na ciência.

A visão distorcida que Aristóteles tinha da mulher surtiu efeitos particularmente danosos, pois foi ela – e não a visão de Platão – que predominou durante toda a Idade Média. Desta forma, a Igreja herdou uma visão da mulher para a qual não há qualquer fundamento na Bíblia. Afinal de contas, Jesus certamente não foi um inimigo das mulheres!Vou ficando por aqui. Mas você logo vai ter notícias minhas.

REFERÊNCIA

GAARDER, Jostein. O Mundo de Sofia. São Paulo: Cia. das Letras, 1998.

[3ª Série] Filosofia: Fédon e a Imortalidade da Alma

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Olá turmas! Achei este texto sobre a imortalidade da alma para Platão que foi feito por mim no meu primeiro ano de Faculdade. Ainda tinha algumas dificuldades na escrita e também na exposição das ideias, portanto, sejam  pacientes. =) Apesar disso, creio que ele servirá na compreensão do tema já trabalho em sala. Espero que aproveitem.

A questão da Imortalidade da Alma no Diálogo Fédon, de Platão

Por Karoline Rodrigues de Melo - Filosofia Antiga I, 2003
A discussão sobre  morte parece começar efetivamente quando Sócrates pede à Cebes, quando encontrar Eveno[1], que transmita-lhe as suas saudações e um conselho: "se de fato ele é sábio que siga minhas pegadas o mais depressa que puder!"[2]. Ele quer dizer aqui que o sábio, o filósofo deseja muito morrer e sua vida consiste em preparar-se para a morte. Entretanto, tem o cuidado de dizer que mesmo para aqueles que a morte é vista como um bem, não se deve cometer suicídio, pois "os Deuses são aqueles sob cuja guarda estamos, e nós homens somos uma propriedade dos Deuses"[3].
Neste fragmento parece estar exposto mais a ideia do próprio Sócrates de que a de Platão. Sócrates respeitava o deus Apolo, e quando foi condenado à morte acreditava que o deus queria-o para perto de si. 

Quando seu amigo Querofonte fora à Delfos consultar o oráculo para saber quem era o mais sábio de Atenas, a sacerdotisa do templo afirmou que não havia ninguém mais sábio do que Sócrates. Ele se surpreende, pois acreditava nada saber. Mas Apolo não mente, então Sócrates tenta entender o que o deus quis dizer com a profecia.

Sócrates sai às ruas à procura do verdadeiro sábio. Sábio, para Sócrates, era aquele que sabia conceituar, dizer "o que é" e "para que serve". Ele procurou nos grupos de políticos, poetas e artesãos quem pudesse responder "o que é" que fazem e "para quê" fazem. Percebendo que em nenhum dos grupos alguém soube lhe responder, concluiu que ele era realmente o homem mais sábio de Atenas, visto que sabia que não sabia, ao contrário dos outros que achavam ou fingiam que sabiam.

Na Defesa de Sócrates ou Apologia de Sócrates, escrita por seu discípulo Platão, Sócrates afirmava ter dentro de si um "daimon"[4] que dizia o que não deveria fazer. E quando estava a caminho de seu julgamento o daimon não se manifestou. Por conta disso, Sócrates na passagem 40c diz não ser propriamente um mal a sua condenação à morte, já que o seu "daimon" não se opôs.

Parece que, na Apologia de Sócrates estão as ideias de Sócrates, ao contrário do diálogo Fédon onde são as ideias de Platão expostas. Quando Sócrates afirma na Apologia que a morte pode não ser um mal, ele não afirma diretamente que há uma vida após a morte. Ele levanta duas hipóteses: uma, que a morte possa parecer-se com um sono profundo, sem sonhos e, portanto, sem sensações. E outra hipótese levando em conta a tradição órfica, que diz existir uma vida após a morte. 

Sendo assim, se morrer é como um sono profundo então "é igual a nada, e não sente nenhuma sensação de coisa alguma", "Se não há nenhuma sensação, se é como um sono em que o adormecido nada vê nem sonha, que maravilhosa vantagem seria a morte"[5], e assim o fosse não haveria sofrimento para aqueles que, em vida, praticaram ou praticam algum mal.

Por outro lado, se existisse uma vida após a morte, parece que esta agradaria mais a Sócrates. Estaria ele ao lado de grandes personagens como Homero e Hesíodo, podendo conversar e até interrogá-los como sempre fez em busca da sabedoria. No entanto, não afirma nem a primeira, nem a segunda hipótese. 

Ele não temia a morte por não saber o que viria depois, se é que depois dela teria alguma coisa. Se a vida é melhor que a morte, também não saberia dizer, "é segredo para todos, menos para a divindade"[6].

No Fédon, Sócrates tenta tranquilizar e convencer seus amigos dizendo que amorte por ele já era muito esperada. A morte, ao que parece, é uma outra vida só que desvencilhada do corpo. E aqueles que são verdadeiramente filósofos estão sim se preparando para a morte. 

O corpo é tido como "cárcere da alma". Enquanto a alma estiver em um corpo, não será capaz de contemplar o verdadeiro. Tudo o que percebemos através dos nossos sentidos não nos é digno de confiança. 

Aparece aqui o esboço da teoria das Formas explícita por Platão no diálogo A República. Ele acredita haver formas universais, perfeitas em si mesmas, não sujeitas à geração e à corrupção e que seguram as coisas aqui do mundo sensível onde estamos. O mundo sensível é cópia dessas formas que estão no mundo das ideias.

Como os filósofos devem se preparar para a morte? Distanciando-se ao máximo dos prazeres corpóreos. Bebidas e comidas em excesso são evitadas. Quanto ao dinheiro e ao luxo, os filósofos não se importam com isso. E ao amor corpóreo também devem se afastar. Quem está prezo aos prazeres do corpo não é capaz de enxergar o que há de mais verdadeiro. Por isso, "durante todo o tempo em que tivermos o corpo, e nossa alma estiver misturada com essa coisa má, jamais possuiremos completamente o objeto de nossos desejos [...] este objeto é a verdade"[7].

Quem não se priva dos prazeres corpóreos não é capaz de voltar-se para a alma; ama tanto o corpo que teme a morte, e só através dela é que o homem pode enxergar o que é verdadeiro.

Para o filósofo, o prazer não está nas coisas mundanas, está na contemplação do que há de mais Verdadeiro, mais perfeito, o mais digno de ser amado: a Sabedoria[8]. É após a morte que o homem pode conhecer o que é "bom em si", "belo em si", "justo em si". Aquele que dedica a amar as coisas referentes ao corpo, que deixa levar-se pelos prazeres corporais, quando morrer não quererá ficar longe do corpo. Estando esta alma impura por passar uma vida inteira com a alma misturada ao corpo tornar-se-á visível, vagando entre os vivos.

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[1] Eveno foi um poeta grego. Sócrates se refere a ele, pois, enquanto aguardava a execução de sua pena, havia escrito alguns versos e Eveno tomara conhecimento destes. Sócrates afirma que os escreveu em virtude de alguns sonhos que havia tido e esses diziam para ele compor músicas.
[2] Fédon, (61c).
[3] Fédon, (62b).
[4] Espécie de gênio. Funciona como a consciência de Sócrates.
[5] Defesa de Sócrates, (40d).
[6] Defesa de Sócrates, (42a).
[7] Fédon, (66b).
[8] Fédon, (66c).

[2ª Série] Filosofia: O Mito da Caverna

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

O Mito da Caverna conforme descrito no Livro VII de A República

Trata-se de um trecho do Livro VII de A República: no diálogo, as falas na primeira pessoa são de Sócrates, e seus interlocutores, Glauco e Adimanto, são os irmãos mais novos de Platão.


- Agora - continuei - representa da seguinte forma o estado de nossa natuureza relativamente à instrução e à ignorância. Imagina homens em morada subterrânea, em forma de caverna, que tenha em toda a largura uma entrada aberta para a luz; estes homens aí se encontram desde a infância, com as pernas e o pescoço acorrrentados, de sorte que não podem mexer-se nem ver alhures exceto diante deles, pois a corrente os impede de virar a cabeça; a luz lhes vêm de um fogo aceso sobre uma eminência, ao longe atrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa um caminho elevado; imagina que, ao longo deste caminho, ergue-se um pequeno muro, semelhante aos tabiques que os exibidores de fantoches erigem à frente deles e por cima dos quais exibem as suas maravilhas.

- Vejo isso - disse ele.

- Figura, agora, ao longo deste pequeno muro homens a transportar objetos de todo gênero, que ultrapassam o muro, bem como estatuetas de homens e animais de pedra, de madeira e de toda espécie de matéria; naturalmente, entre estes portadores, uns falam e outros se calam.

- Eis - exclamou - um estranho quadro e estranhos prisioneirosl

- Eles se nos assemelham - repliquei - mas, primeiro, pensas que em tal situação jamais hajam visto algo de si próprios e de seus vizinhos, afora as sombras projetadas pelo fogo sobre a parede da caverna que está à sua frente?

- E como poderiam? - observou - se são forçados a quedar-se a vida toda com a cabeça imóvel?

E com os objetos que desfilam, não acontece o mesmo? - Incontestavelmente.

- Se, portanto, conseguissem conversar entre si não julgas que tomariam por objetos reais as sombras que avistassem? - Necessariamente.

- Considera agora o que lhes sobrevirá naturalmente se forem libertos das cadeias e curados da ignorância. Que se separe um desses prisioneiros, que o forcem a levantar-se imediatamente, a volver o pescoço, a caminhar, a erguer os olhos à luz: ao efetuar todos esses movimentos sofrerá, e o ofuscamento o impedirá de distinguir os objetos cuja sombra enxergava há pouco. O que achas, pois, que ele responderá se alguém lhe vier dizer que tudo quanto vira até então eram vãos fantasmas, mas que presentemente, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, vê de maneira mais justa? Se, enfim, mostrando-lhe cada uma das coisas passantes, o obrigar, à força de perguntas, a dizer o que é isso? Não crês que ficará embaraçado e que as sombras que via há pouco lhe parecerão mais verdadeiras do que os objetos que ora lhe são mostrados?

- Muito mais verdadeiras - reconheceu ele.

- Imagina ainda que este homem torne a descer à caverna e vá sentar-se em seu antigo lugar: não terá ele os olhos cegados pelas trevas, ao vir subitamente do pleno sol?

- Seguramente sim - disse ele.

- E se, para julgar estas sombras, tiver de entrar de novo em competição, com os cativos que não abandonaram as correntes, no momento em que ainda está com a vista confusa e antes que seus olhos se tenham reacostumado (e o hábito à obscuridade exigirá ainda bastante tempo), não provocará riso à própria custa e não dirão eles que, tendo ido para cima, voltou com a vista arruinada, de sorte que não vale mesmo a pena tentar subir até lá? E se alguém tentar soltá-Ios e conduzi-los ao alto, e conseguissem eles pegá-lo e matá-Io, não o matarão?

- Sem dúvida alguma - respondeu.

- Agora, meu caro Glauco - continuei - cumpre aplicar ponto por ponto esta imagem ao que dissemos mais acima, comparar o mundo que a vista nos revela à morada da prisão e a luz do fogo que a ilumina ao poder do sol. No que se refere à subida à região superior e à contemplação de seus objetos, se a considerares como a ascensão da alma ao lugar inteligível, não te enganarás sobre o meu pensamento, posto que também desejas conhecê-Io. Deus sabe se ele é verdadeiro. Quanto a mim, tal é minha opinião: no mundo inteligível, a idéia do bem é percebida por último e a custo, mas não se pode percebê-Ia sem concluir que é a causa de tudo quanto há de direito e belo em todas as coisas; que ela engendrou, no mundo visível, a luz e o soberano da luz; que, no mundo inteligível, ela própria é soberana e dispensa a verdade e a inteligência; e que é preciso vê-Ia para conduzir-se com sabedoria na vida particular e na vida pública.

Partilho de tua opinião - replicou - na medida em que posso.

(Platão, A República, 2. ed., São Paulo, Difel, 1973, p. 105 a 109.)

[2ª e 3ª Série] Filosofia: O Mito do Destino das Almas - Fédon, de Platão


Mito do destino final das almas

Fonte

O que contam é o seguinte: ou morrer alguém, o demônio que em vida lhe tocou por sorte se encarrega de levá-lo a um lugar em que se reúnem os mortos para serem julgados e de onde são conduzidos para o Hades com guias incumbidos de indicar-lhes o caminho. Depois de terem o destino merecido e de lá permanecerem o tempo indispensável, outro guia os traz de volta, após numerosos e longos períodos de tempo.
Esse caminho não é o que diz Télefo, de Ésquilo, ao afirmar que o caminho do Hades é simples; a meu ver nem é simples nem único. Se fosse o caso, seria dispensável guia, pois ninguém se perde onde a estrada é uma só. O que parece é que ele é cheio de voltas e bifurcações. Digo isso com base nos ritos sagrados e cerimônias aqui em uso.
De qualquer forma, a alma prudente e moderada acompanha seu guia, perfeitamente consciente do que se passa com ela; mas, como disse há pouco, a que se agarra avidamente ao corpo esvoaça durante muito tempo em torno dele e do mundo visível, e depois de grande relutância e de sofrimentos sem conta, é por fim arrastada dali, à força e com dificuldade pelo demônio incumbido de conduzi-la.
Uma vez alcançado o lugar em que se encontram, outras almas, a que se acha impura pela prática do mal, de homicídios injustos ou de crimes semelhantes, irmãos daqueles e iguais aos que soem praticar almas irmãs, de umas alma como essa todas se afastam, evitam-na, não havendo guia nem companheiro de jornada que com ela se associe.
Tomada de grande perplexidade, vagueia por todos os lugares até escoar-se certo tempo, depois do que a arrasta a Necessidade para a moradia que lhe foi determinada. A que atravessou a vida com pureza e moderação e alcançou deuses por guias e companheiros de jornada, obtém moradia apropriada.

Cosmologia e geografia gerais

A Terra apresenta um sem-número de lugares maravilhosos, não sendo nem de tão extensa nem da forma como a imaginam as que se comprazem em discorrer a seu respeito, conforme alguém mo demonstrou.
Nessa altura falou Símias: Que queres dizer com isso, Sócrates? Sobre a Terra eu também já ouvi dizerem muita coisa; porém não o de que te mostras convencido. De muito bom grado te ouviria falar a esse respeito.
Para fazer essa descrição, Símias, não me parece necessária a arte de Glauco. Mas o que se me afigura mais difícil do que a arte de Glauco é provar a sua veracidade. É possível, até, que me falte capacidade para tanto; porém mesmo que a tivesse, o pouquinho de vida que me resta, Símias, não chegaria para tão longa exposição. Contudo não vejo impedimento em expor-te a ideia que faço da forma da Terra e de suas diferentes regiões.
Será o suficiente, falou Símias.
Para começar, principiou, fiquei convencido de que, se a Terra é de forma esférica e está colocada no meio do céu, para não cair não precisará nem de ar nem de qualquer outra necessidade da mesma natureza: por que para sustentar-se é suficiente a perfeita uniformidade do céu e seu equilíbrio natural. Pois uma coisa em equilíbrio natural. Pois uma coisa em equilíbrio no meio de qualquer elemento homogêneo, não se inclinará, no mínimo, para nenhum lado, mas se conservará sempre fixa e no mesmo estado. Foi esse o primeiro ponto, arrematou, que passei a admitir.
E com razão, observou Símias.
Ao depois, continuou, que também se trata de algo imensamente grande e que nós outros, moradores da região que vai do Fásis às Colunas da Hércules, ocupamos uma porção insignificante da terra, em torno do mar à feição de formigas e rãs na beira de um charco. É que por toda a Terra há muitas concavidades, de forma e tamanho variáveis, para as quais converge água, vapor e ar. Porém a própria terra se acha pura no céu puro, onde estão os astros, denominado éter por quantos costumam discorrer sobre essas questões, cuja borra, precisamente, é tudo aquilo que não pára de depositar-se nas cavidades da terra.
Quanto a nós, por não percebemos que moramos nessas concavidades, imaginamos viver em cima da Terra como se daria com quem morasse no meio do mar fundo e pensasse estar na superfície, e vendo através da água o Sol e os outros astros, tomaria o mar pelo céu. Por indolência e fraqueza muito próprias, nunca subiu até o espelho da água, nem viu nunca, depois de emergir do mar e de levantar a cabeça fora da água na direção desses lugares, quanto são mais puros e mais lindos do que o outro, o que também não poderia ter ouvido de nenhuma testemunha ocular. É exatamente o que se dá conosco. Habitantes de uma dessa concavidades da Terra, imaginamos morar em cima dela, e damos ao ar o nome de céu, como se o ar fosse o próprio céu em que se movimentam os astros. É igualzinha nossa situação: por indolência e fraqueza, não somos capazes de atingir o limite extremo do ar. Pois no caso de chegar alguém ao cimo ou de adquirir asas e de voar, emergiria e passaria a ver como os peixes aqui de baixo quando põem a cabeça fora da água e veem o que se passa entre nós: de igual modo veria o que há por lá, e no caso de aguentar sua natureza por algum tempo semelhante vista, reconheceria ser aquele o verdadeiro céu, a verdadeira luz e a verdadeira terra. Sim, porque esta nossa terra, as pedras e toda a região que nos circunda estão estragadas e corroídas, tal como corroído está pela salsugem tudo o que há no mar. Nada cresce no mar digno de menção, nem há nada perfeito, por assim dizer; apenas cavernas, areia, lama a perder de vista e lodo por onde quer que haja terra, nada, em suma, que suporte cotejo com as coisas belas de nosso mundo. Mas aquelas, por sua vez, em confronto com as nossas, de muito as ultrapassam.

A terra superior

Se fosse oportuno, contar-vos-ia um belo mito, Símias, digno de ser ouvido, de como é constituída essa terra situada embaixo do céu.
Mas nem há dúvida, Sócrates, falou Símias; escutaremos teu mito com o maior prazer.
O que dizem, companheiro, para começar, é que essa terra fosse vista de cima por alguém, pareceria um desses balões de couro de doze peças de cores diferentes, de que são simples amostras as cores conhecidas entre nós que os pintores empregam. Toda aquela terra é assim, porém de cores muito mais pura e brilhantes; uma parte é de cor é púrpura e admiravelmente bela; outra é dourada; outra, ainda, com ser branca, é mais alva do que o giz e a neve, o mesmo acontecendo com todas as cores de que é feita, em muito maior número e mais belas do que quantas possamos já ter visto. Pois até mesmo as concavidades da terra, estando cheias de ar e de água, mostram uma cor de brilho especial, resultante da mistura de todas as cores, de forma que a Terra apresenta colorido de uniforme variedade.
Nessa terra assim constituída, tudo cresce nas mesmas proporções: árvores, flores ou frutos. Comas montanhas dá-se o mesmo; as pedras, relativamente, são mais macias e translúcidas e de cores muito lindas, das quais são parcela insignificante nossas pedrazinhas tão apreciadas: sardônicas, jaspe e esmeraldas, e todas as outras da mesma natureza. As de lá são todas desse jeito e ainda mais belas. A causa disso, vamos encontrá-la no fato de serem puras aquelas pedras e não ficarem estragadas nem corroídas, como as nossas, pela putrefação e pala salsugem que convergem para os lugares cá de baixo e que deformam e deixam doente não somente as pedras e o solo, como também os animais e as plantas. Tudo isso enfeita aquela terra, também ouro e prata e o que mais houver do mesmo gênero, de tanta refulgência tudo em tão grande cópia espalhado pela vastidão da terra ,que sua vista é verdadeiramente edificante.
Existem nela animais em profusão, e também em parte nas margens do ar, como nós moramos nas do mar, em parte nas ilhas cercadas de ar, perto dos continentes. Numa palavra: o ar para eles é com a água e o mar para nossas necessidades, assim como para eles o éter é o que para nós é o ar. As estações entre eles são de tal modo temperadas, que ninguém cai doente, vivendo todos muito mais tempo do que os homens cá de baixo.
Quanto à vista, o ouvido o pensamento e demais atributos desse gênero, eles nos ultrapassam na mesma proporção em que o ar vence em pureza a água e o éter o próprio ar. Há também entre eles templos e bosques sagrados, nos quais viver efetivamente as divindades, bem como vozes, profecias e aparições dos deuses, que é como se comunicam com eles, de rosto a rosto. Ademais, veem o sol, a lua e as estrelas com são na realidade, andando a par com tudo isso o restante de sua bem-aventurança.
Assim é a natureza da terra em seu conjunto e das coisas que a circundam.

Geografia infernal

Nas entranhas da terra, por todo o seu contorno notam-se numerosas concavidades, algumas mais profundas e patentes do que esta em que moramos, outras também profundas, porém com entrada mais angusta do que a nossa, havendo, ainda, umas tantas de menor fundura, porém mais largas do que esta.
Todas essas regiões se comunicam entre si em muitos lugares por passagens subterrâneas, de largura variável, além de possuírem outras vias de acesso. Muita água corre de uma para outra, como nos grandes vasos, havendo, outrossim, embaixo da terra rios perenes de grandeza descomunal, de água quente e fria, e também muito fogo e grandes rios de fogo, bem como correntes de lama líquida, ora mais limpa, ora mais suja, tal como antes de lava os rios de lama da Sicília, e depois a própria lava. Essas diferentes regiões se enchem de semelhante matéria, de acordo com a direção ocasional da corrente. Essas águas se movimentam para cima e para baixo, como um pêndulo colocado no interior da terra. Semelhante oscilação deve provir do seguinte: Entre as aberturas da terra, uma há particularmente grande, que a atravessa em toda a sua extensão e a que se refere Homero nos seguintes termos:

Essa voragem profunda que em baixo da terra se encontra, e que por ele mesmo e muitos outros poetas é denominada Tártaro. É para essa abertura que confluem todos os rios, como é dela, também, que todos partem, adquirindo cada um as propriedades do terreno por onde passam. A razão de saírem de todos os rios dessa abertura e de voltarem para ela, é carecerem suas águas de fundo e de base; daí oscilarem e flutuarem para cima e para baixo. Concorrem para o mesmo efeito o ar e o vento que as envolvem, por acompanhá-las tanto quando se precipitam para as regiões do outro lado da terra como quando se dirigem para o lado de cá. E assim como o sopro de quem respira se encontra em constante movimento, na inspiração e na expiração, do mesmo modo o sopro predominante naquelas regiões, juntamente com as águas, quando entram e quando saem, produz ventos de irresistível violência.
Ao se dirigirem as águas para os lugares que denominamos de baixo, afluem para os leitos das correntes desse lado e os enchem, como nos sistemas de irrigação; quando, inversamente, os abandonam e retornam para cá, voltam a encher os deste lado. Uma vez cheios, correm pelos canais e pela terra, seguindo as vias naturais do solo e passam a formar lagos, mares, rios e fontes. De lá, voltando a mergulhar na terra, depois de uma parte das águas circular por maios número de regiões e mais extensas, enquanto outras fazem trajeto pequeno em menos lugares, lançam-se outra vez no Tártaro, algumas muito mais abaixo do nível em que corriam, outras um pouco menos, conquanto desemboquem todas muito abaixo do ponto de partida. Alguns rios irrompem do lado oposto da saída, outros do mesmo lado; sim, casos há de descreverem um círculo completo: enrolando-se uma ou mais vezes em torno da terra, à feição de serpentes, descem o mais possível para de novo se lançarem no Tártaro. Os rios de ambos os lados podem baixar até o centro, porém não ultrapassá-lo, pois de cada lado a margem desses rios é de aclive acentuado.
Há muitas outras caudais do mais variado aspecto, porém nessa multidão de rios há quatro, particularmente, dos quais o maior e mais afastado do centro, denominado Oceano, circunda a Terra inteira. De fronte deste e em sentido contrário deflui o Aqueronte, que além de atravessar muitas regiões desertas, corre por baixo da terra, até alcançar a Lagoa Aquerúsia, para onde vão as almas da maioria dos mortos, as quais, depois de ali permanecerem o tempo marcado pelo destino, umas mais outras menos, são reenviadas para renascerem em animais. O terceiro rio irrompe dentre os dois primeiros, para lançar-se, perto de sua origem, num lugar amplo e cheio de fogo, onde forma um lago maior do que o nosso mar, de água e lama ferventes. Daí, torvo de tanta lama, descreve um círculo e depois de contornar a terra e atravessar outros lugares, atinge o limite extremo da Lagoa Aquerúsia, sem que suas águas se misturem com as desta. Por fim, depois de muitas voltas sempre dentro da terra lança-se na porção mais baixa do Tártaro. Esse é que tem o nome de Piriflegetonte, cujas lavas jogam partículas incandescentes em diversos pontos da superfície da terra.
Defronte dele, por sua vez, desemboca o quarto rio, a princípio numa região selvática e pavorosa, e, ao que se diz, toda ela de colorido azul escuro, denominada Estígia, sendo chamada Estige a lagoa em que ele vem lançar-se. Depois de nela cair e adquirirem suas águas propriedades terríveis, afunda pela terra, traçando voltas sem conta em sentido contrário às do Piriflegetonte, com o qual vai defrontar-se no lado oposto da lagoa Aquerúsia. Suas águas, também, não se misturam com as outras, vindo ele a desaguar no Tártaro defronte do Piriflegetonte. O nome desse rio, no dizer dos poetas, é Cócito.

Sanções

Sendo essa a disposição natural dos rios, quando os mortos chegam ao local determinado para cada um o seu demônio particular, antes de mais nada são julgados, tanto os que levaram vida bela e santa como os que viveram mal. Os classificados como de procedimento mediano, dirigem-se para o Aqueronte e sobem para as barcas que lhes são destinadas e que os transportam para a lagoa. Aí passam a residir e se purificam, e no caso de haverem cometido alguma falta, cumprem a pena imposta e são absolvidos ou recompensados, de acordo com o mérito de cada um.
Os reconhecidamente incuráveis, por causa da enormidade de seus crimes, roubos de templos, repetidos e graves, homicídios iníquos e contra a lei, e muitos outros do mesmo tipo que se cometem por aí: esses lança-os no Tártaro a sorte merecida, de onde não sairão nunca mais. Os autores de faltas sanáveis, embora graves – seria o caso dos que, num momento de cólera, usaram de violência contra o pai ou a mãe, mas que se arrependeram o resto da vida, ou os que se tornaram homicidas por idênticos motivos – todos terão fatalmente de ser lançados o Tártaro. Porém m ano depois de ali caírem, as ondas jogam os assassinos para o Cócito, e os culpados de violência contra o pai e a mãe para o Piriflegetonte. Arrastados, assim, pela correnteza, quando atingem a Lagoa Aquerúsia, alguns chamam a vozes os que eles mesmos mataram, outros as vítimas de suas violências; e ao acorrerem todos a seus brados, imploram permissão de passar para a lagoa e de serem recebidos. Se conseguem com eles que os atendam, ingressam na lagoa, terminando logo ali seus sofrimentos; caso contrário, são mais uma vez levados para o Tártaro e deste, novamente, para os rios, prolongando-se, dessa forma, o castigo até conseguirem o perdão de suas vítimas.
Essa pena lhes é imposta pelos juízes. Por último, os que são reconhecidos como de vida eminentemente santa, ficam dispensados de permanecer nessas moradas subterrâneas e, como egressos da prisão atingem, as regiões puras e passam a residir na terra. Entre esses, os que já se purificaram suficientemente por meio da filosofia, vivem daí por diante sem corpo e vão para moradias ainda mais belas do que as outras. Desisto de descrevê-las, à uma, por não ser fácil tarefa, à outras, por não dispor agora de tempo para tanto.

Lição do mito

Do que vos expusemos, Símias, precisamos tudo fazer para em vida adquirir virtude e sabedoria, pois bela é a recompensa e infinitamente grande a esperança.
Afirmar, de modo positivo, que tudo seja como acabei de expor, não é próprio de homem sensato; mas que deve ser assim mesmo ou quase assim no que diz respeito a nossas almas e suas moradas, sendo a alma imortal como se nos revelou, é proposição que me parece digna de fé e muito própria para recompensar-nos do risco em que incorremos por aceitá-la como tal. É um belo risco, eis o que precisamos dizer a nós mesmos à guisa da formula de encantamento. Essa é a razão de me ter alongado neste mito.
Confiado nele; é que pode tranquilizar-se com relação a sua alma o homem que passou a vida sem dar o menor apreço aos prazeres do corpo e aos cuidados especiais que este requer, por considerá-los estranhos a si mesmo e capazes de produzir, justamente, o efeito oposto. Todo entregue aos deleites da instrução, com os quais adornava a alma, não como se o fizesse com algo estranho a ela, porém como joias da mais feliz indicação: temperança, justiça, coragem, nobreza e verdade, espera o momento de partir para o Hades quando o destino o convocar. Vós também, Símias e Cebete, acrescentou, e todos os outros, tereis de fazer mais tarde essa viagem, cada um no seu tempo. A mim, porém, para falar como herói trágico, agora mesmo chama-me o destino. Mas esta quase na hora de tomar o banho. Acho melhor fazer isso antes de beber o veneno, para não dar às mulheres o trabalho de lavar o cadáver.
Depois de dizer essas palavras, falou Critão: Está bem, Sócrates; porém que determinações me deixas ou a estes aqui, a respeito de teus filhos, ou o que mais poderemos fazer por amor de ti, que nos fora grato executar?
O que sempre vos digo, Critão, foi a sua resposta; nada tenho a acrescentar: se cuidardes de vós mesmos, tudo o que fizerdes será tanto por amor de mim e dos meus como de todos, ainda mesmo que nada me tivésseis prometido neste momento. Porém no caso de vos descuidardes de vós mesmos e de não orientardes a vida como que no rastro do que vos disse agora e no passado, por mais numerosos e solenes que fossem vossos juramentos neste instante, não avançareis um único passo.
Quanto a isso, respondeu, esforçar-nos-emos para viver dessa maneira. Mas, como devemos sepultar-te?
Como quiserdes, disse; basta que segureis de verdade e que eu não vos escape.
Depois, sorriu de mansinho e disse, olhando para o nosso lado: Não consigo, senhores, convencer Critão de que eu sou o Sócrates que neste momento conversa com ele e comenta seus argumentos; toma-me por quem ele irá ver morto dentro de pouco. Por isso pergunta como deverá sepultar-me. Quanto ao que vos tenho dito tantas vezes, que depois de beber o veneno não ficarei convosco mais irei compartilhar da dita dos bem-aventurados, ele acha que eu só falo assim para tranquilizar-vos e a mim também. Servi-me, pois, de fiador junto de Critão, porém que seja essa fiança o oposto da que ele prestou perante os juízes. Empenhou, então, a palavra em como eu ficaria; por vossa vez, afirmai-lhe, que não ficarei depois de morto, porém sairei daqui e partirei, para que ele se mostre mais paciente e não se aflija tanto por minha causa, quando vir queimarem ou enterrarem meu corpo, no pressuposto de que eu esteja sofrendo enormemente, nem diga nos meus funerais que expõe Sócrates, ou o carrega, ou o sepulta. Fica sabendo, continuou, meu admirável Critão, que a imprecisão da linguagem, além de ser um defeito em si mesma, produz mal às almas. Importa criares coragem e dizer que é meu corpo que vais enterrar; depois sepulta-o como te aprouver e como te parecer mais de acordo com as leis.

Epílogo

Tendo acabado de falar, levantou-se e foi para outro compartimento, a fim de banhar-se. Critão o acompanhou; a nós mandou que esperássemos. Ali ficamos, então, a conversar e comentar tudo o que ele dissera e a discorrer sobre o nosso grande infortúnio. Sentíamos, em verdade, como quem houvesse perdido o pai e tivesse de ficar órfão para o resto da vida. Depois de tomar banho, trouxeram-lhe os filhos – dois ainda eram pequenos; o outro, mais crescido. – Chegaram também as mulheres de casa, com as quais ele conversou na frente de Critão, e depois de lhes haver feito certas recomendações, pediu que retirassem dali as mulheres e os meninos e veio para o nosso lado. O sol já estava quase a desaparecer, pois Sócrates havia ficado lá dentro bastante tempo. Ao vir do banho, sentou-se, porém não conversou muito. Achegou-se-lhe o comissário dos Onze, que lhe disse:
Sócrates, falou, de ti não terei de queixar-me como dos outros, que se zangam comigo e rompem em palavras e pragas, quando os convido a tomar o veneno por determinação superior. No teu caso, pelo contrário, durante todo este tempo e em várias outras oportunidades, pude reconhecer em ti o homem mais nobre, mais delicado e melhor de quantos para aqui têm vindo. Hoje, especialmente, tenho certeza de que não te zangarás comigo, pois sabes muito bem que é dos outros a culpa. E agora, já que ficaste ciente do que vim anunciar-te. Adeus; suporta o inevitável da melhor maneira possível.
E desatando a chorar, deu as costas e retirou-se. Sócrates olhou para ele disse: Adeus, também para ti; faremos isso mesmo.
Depois, voltando-se para o nosso lado: Que homem delicado! Disse. Durante todo este tempo , vinha sempre ver-me e várias vezes conversou comigo. Excelente criatura. Agora mesmo, quanta generosidade revela com esse choro por minha causa! Porém vamos, Critão; obedeçamos-lhe; tragam logo o veneno, se estiver pronto; senão, cuide de prepará-lo o encarregado disso.
Critão observou: O que eu acho, Sócrates, lhe disse, é que o sol ainda está por cima das montanhas; não baixou de todo. Sei também que muitos tomaram o veneno bem depois da intimação e de comerem e beberem à farta; sim, alguns mesmo depois de relações amorosas com que lhe apetecesse. Não te apresses; temos tempo.
E Sócrates: É natural, Critão, assim falou, que esses tais procedessem conforme disseste, por imaginarem que disse lhes adviria alguma vantagem. Mas é também natural não proceder eu dessa maneira, pois não vejo o que posso vir a lucrar em beber o veneno um pouco mais tarde, se não for tornar-me ridículo a meus próprios olhos, por agarrar-me dessa maneira à vida e tentar economizar o que já não existe. Vamos, continuou: obedece-me e só faças o que eu digo.
Ouvindo-o, Critão fez sinal ao menino que se encontrava mais perto. Este saiu e voltou pouco depois em companhia do encarregado de lhe dar o veneno, que já o trazia espremido na taça. Ao ver o homem, Sócrates perguntou-lhe. E agora, meu caro: já que entendes destas coisas, que precisarei fazer?
Nada mais, respondeu, do que andar depois de beber, até sentires peso nas pernas, e em seguidas deitar-te. Assim o veneno atuará.
Depois dessas palavras, estendeu a Sócrates a taça, que a tomou das mãos dele com toda a tranquilidade, sem o menor tremor nem alteração da cor ou das feições. Mirando por baixo o homem, com aquele seu olhar de touro, perguntou-lhe: Que me dizes? E se eu fizesse uma libação com um pouquinho disto aqui? É permitido ou não?
Só preparamos, Sócrates, respondeu, a quantidade que nos parece suficiente.
Compreendo, retrucou. Mas pelo menos é permitido, e até um dever, pedir aos deuses que façam feliz a passagem deste mundo para o outro. É o que peço. Prouvera que me atendam!
Depois de assim falar, levou a taça aos lábios e com toda a naturalidade, sem vacilar um nada, bebeu até à última gota. Até esse momento, quase todos tínhamos conseguido reter as lágrimas; porém quando o vimos beber e que havia bebido tudo, ninguém mais aguentou. Eu também não me contive: chorei à lágrima viva. Cobrindo a cabeça, lastimei o meu infortúnio; sim, não era por desgraça que eu chorava, mas a minha própria sorte, por ver de que espécie de amigo me veria privado. Critão levantou-se antes de mim, por não poder reter as lágrimas. Apolodoro, que desde o começo não havia parado de chorar, pôs se a urrar, comovendo seu pranto e lamentações até o íntimo todos os presentes, com exceção do próprio Sócrates.
Que é isso, gente incompreensível? Perguntou. Mandei sair as mulheres, para evitar esses exageros. Sempre soube que só se deve morrer com palavras de bom agouro. Acalmai-vos! Sede homens!
Ouvindo-o falar dessa maneira, sentimo-nos envergonhados e paramos de chorar. E ele, sem deixar de andar, ao sentir as pernas pesadas, deitou-se de costas, como recomendara o homem do veneno. Este, a intervalos, apalpava-lhe os pés e as pernas. Depois, apertando com mais força os pés, perguntou se sentia alguma coisa. Respondeu que não. De seguida, sem deixar de comprimir-lhe a perna, do artelho para cima, mostrou-nos que começava a ficar frio e a enrijecer. Apalpando-o mais uma vez, declarou-nos que no momento em que aquilo chegasse ao coração, ele partiria. Já se lhe tinha esfriado quase todo o baixo-ventre, quando, descobrindo o rosto – pois o havia tapado antes – disse, e foram suas últimas palavras: Critão, exclamou, devemos um galo a Asclépio. Não te esqueças de saldar essa dívida!
Assim farei, respondeu Critão, vê se queres dizer mais alguma coisa.
A essa pergunta, já não respondeu. Decorrido mais algum tempo, deu um estremeção. O homem o descobriu; tinha o olhar parado. Percebendo isso, Critão fechou-lhe os olhos e a boca.
Tal foi o fim do nosso amigo, Equécrates, do homem, podemos afirmá-lo, que entre todos os que nos foi dado conhecer, era o melhor e também o mais sábio e mais justo.

[1ª Série] Tópicos de Filosofia: Heráclito de Éfeso

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Boa noite, galerinha!

Este vídeo exibido no Fantástico pela Viviane Mosé mostra de forma bem didática a teoria do filósofo pré-socrático Heráclito.


Assistam-no e depois respondam em seus cadernos as questões abaixo:

1) Você acredita que existem coisas ou situações que são eternas, que permanecem intactas? Dê exemplos.
2) Qual é a principal ideia da filosofia de Heráclito de Éfeso?
3) Explique a frase do filósofo "não podemos nos banhar duas vezes no mesmo rio, porque o rio não é o mesmo e nós nunca somos os mesmo".
4) Qual é a visão cosmológica (origem do mundo, do universo) de Heráclito?
5) O que significa o termo "devir"? De que forma este termo está presente na filosofia de Heráclito?

[2ª Série] Filosofia: Platão

domingo, 12 de agosto de 2012


Platão
Filósofo grego, discípulo de Sócrates, Platão deixou Atenas depois da condenação e morte de seu mestre (399 a.C.) Peregrinou doze anos. Conheceu, entre outros, os pitagóricos. Retornou a Atenas em 387 a.C, com 40 anos, procurando reabilitar Sócrates, de quem guardava a memória e o ensinamento. Retomou a teoria de seu mestre sobre a "ideia", e deu-lhe um sentido novo: a ideia é mais do que um conhecimento verdadeiro: ela é o ser mesmo, a realidade verdadeira, absoluta e eterna, existindo  fora e além de nós, cujos objetos visíveis são apenas reflexos.
A doutrina central de Platão é a distinção de mundo visível, sensível ou mundo dos reflexos, e o mundo invisível, inteligível ou mundo das ideias. A essa concepção dos dois mundos se ligam as outras partes de seu sistema: a) o método é a dialética, consistindo em que o espírito se eleve do mundo sensível ao mundo verdadeiro, o mundo inteligível, o mundo das ideias; ele se eleva por etapas, passando das simples aparências aos objetos, em seguida dos objetos às ideias abstratas e, enfim, dessas ideias as ideias verdadeiras que são seres reais que existem fora de nosso espírito; b) a teoria da reminiscência: vivemos no mundo das ideias antes de nossa encarnação" em nosso corpo atual e contemplamos face a face em sua pureza; dessa visão, guardamos uma mudança confusa; nós a reencontramos, pelo trabalho da inteligência, a partir dos dados sensíveis, por "reminiscência"; c) a doutrina da imortalidade da alma, demonstrada no Fédon.
Das obras de Platão, as mais importantes são: Apologia de Sócrates (trata-se do discurso que Sócrates pode pronunciado diante de seus juízes; descreve seu itinerário, seu método e sua ação); Hippias Maior (o que é o belo?); Eutifron (o que é a piedade?); Menon (o que é a virtude? Pode ser ensinada? São os diálogos constituindo o exemplo perfeito da maiêutica; são aporéticos: a questão colocada não é resolvida, o leitor é convidado a prosseguir  a pesquisa após ter purificado seu falso saber); Teeteto (o que é a ciência? Expõe e faz a crítica da tese que faz derivar ciência da sensação e que afirma ser o todas as coisas); Fédon (sobre a imortalidade da alma; diálogo que relata os últimos dias de Sócrates e trata da atitude do filósofo diante da morte); Crátilo (quais as relações entre as coisas e os nomes que lhes são dados? Há denominações naturais ou elas dependem todas da convenção?); O banquete (do amor das belas coisas ao amor do belo em si. Papel pedagógico do amor); Górgias (sobre a retórica; estuda a forma particular de violência que pode ser exercida pelo domínio da retórica e opõe à sofística à filosofia); A  república (da justiça; definição do homem justo a partir do estudo da cidade justa; a cidade ideal, papel da educação, lugar do filósofo na cidade; como o regime ideal é levado a degenerar-se.
Platão enuncia as condições da cidade harmoniosa, governada pelo filósofo rei, personalidade que governa com autoridade, mas com abnegação de si, com os olhos fixos na ideia do bem. A virtude suprema consiste "desapego" do mundo sensível e dos bens exteriores a fim de orientar-se para a contemplação das ideias, notadamente da idéia do bem, e realizar esse ideal de perfeição que é o bem. Abaixo dessa virtude quase divina situa propriamente humana: a justiça, que consiste na harmonia  interior da alma. Outros livros ou diálogos: Críton, Fedro, Parmênides, Timeu e Filebo. Toda a doutrina de Platão pode ser interpretada como uma crítica em relação ao dado sensível, social ou político, e com uma exortação a transformá-lo se inspirando nas ideias, cuja ação (cognitiva, moral e política) deve reproduzir, o mais fielmente possível, a ordem perfeita no mundo do futuro. Para realizar seu "projeto" filosófico, Platão funda a Academia, assim chamada por situar-se nos jardins do herói ateniense Academos. 
Mundo sensível: realidade material, constituída pelos objetos da percepção sensorial; mundo da experiência. Especialmente em Platão, o mundo sensível opõe-se ao mundo inteligível, do qual é cópia.
Mundo inteligível: mundo das ideias ou formas, em Platão entendido como tendo uma realidade autônoma, tanto em relação ao mundo sensível, do qual constitui o modelo perfeito, quanto ao pensamento humano, que no entanto o atinge pela dialética.

[1ª Série] Filosofia: Estudo sobre Mitos


Dois relatos míticos
Costumamos dizer que a filosofia é grega, por ter nascido nas colônias gregas no século VI a.C. E antes da filosofia, que tipos de pensamentos ocupavam a mente das pessoas?
O mito foi o modo de consciência que predomina nas sociedades tribais e que nas civilizações da Antiguidade ainda exerceu significativa influência. Ao contrário, porém, do que muitos supõem, o mito não desapareceu com o tempo. Está presente até hoje, permeando nossas esperanças e temores.
Entre os povos indígenas habitantes das terras brasileiras, encontramos várias versões sobre a origem da noite. Um desses relatos é o dos maué, nativos dos rios Tapajós e Madeira. Segundo eles, no início só havia o dia. Cansados da luz, foram ao encontro da Cobra-Grande, a dona da noite. Ela atendeu ao pedido com a condição de que os indígenas lhe dessem o veneno com que os pequenos animais como aranhas, cobras e escorpiões se protegiam. Em troca, receberam um coco com a recomendação de só abri-lo ao chegarem à maloca. Ao ouvirem ruídos estranhos saindo dele, não resistiram à tentação e assim deixaram escapar antecipadamente a escuridão da noite. Atônitos e perdidos, pisaram nos pequenos bichos, cujas picadas venenosas mataram muitos deles. Desde então, os sobreviventes aprenderam os cuidados que deve riam tomar quando a noite viesse.
De modo semelhante aos maué, os gregos dos tempos homéricos narram o mito de Pandora, a primeira mulher. Em uma das muitas versões desse mito, Zeus enviou um presente aos humanos, mas com a intenção de puni-los por terem recebido o fogo do titã Prometeu, que o roubara dos Céus. Pandora levava consigo uma caixa, que abriu por curiosidade, deixando escapar todos os males que afligem a humanidade. Conseguiu, porém, fechá-Ia a tempo de reter a esperança, única maneira de suportarmos as dores e os sofrimentos da vida.
Nos dois relatos, percebemos situações aparentemente diversas, mas que se assemelham, pois ambos tratam da origem de algo: entre os indígenas, como surgiu a noite; e entre os gregos, a origem dos males. E trazem como consequências dificuldades que as pessoas devem enfrentar. A leitura apressada do mito nos leva a compreendê-lo como uma maneira fantasiosa de explicar a realidade, quando esta ainda não foi justificada pela razão. Sob esse enfoque, os mitos seriam lendas, fábulas, crendices e, portanto, um tipo inferior de conhecimento, a ser superado por explicações mais racionais. Tanto é que, na linguagem comum, costuma-se identificar o  mito à mentira.

[1ª Série]: Tópicos de Filosofia: Heráclito


Heráclito: tudo flui
Viveu no século V a.C: Se o filósofo Parmênides fica impressionado com a identificação racional de um ser que confere identidade à realidade e, ao mesmo tempo, não pode admitir a mobilidade e a variação percebidas no real, Heráclito se impressiona com aquela variação constante que a realidade manifesta aos seus sentidos. “Panta rei“, afirmava Heráclito, o que significa: “Tudo muda”, “tudo flui”.
Este filósofo afirmava que a própria identidade das coisas está na mudança constante, na variação e no movimento incessante. “Não podemos entrar em um rio duas vezes pois, na segunda vez já não são as mesmas águas. Já não é o mesmo rio”, afirmava Heráclito. Para ele, nada existe no mundo que possa escapar à mudança.
Ele afirma que o princípio de tudo, o elemento fundamental é o fogo. É preciso notar que a indicação do fogo como princípio de todas as coisas não coloca Heráclito na mesma condição que os filósofos de Mileto. O fogo mencionado por Heráclito não se iguala à água de Tales ou ao ar de Anaxímenes. Quando Heráclito indica o fogo como elemento primordial, está muito mais próximo de uma linguagem simbólica do que apontando para um fundamento concreto, um arque. É necessário perceber que o fogo só existe pela constante mudança de coisas em cinzas e fumaça. Aniquilada esta mudança, não existe mais o fogo. Assim Heráclito vê toda a realidade como que alimentada de mudança o tempo todo.
Héraclito é verdadeiramente o filósofo da pesquisa. Nele, pela primeira vez, a pesquisa filosófica alcança a clareza da sua natureza e dos seus pressupostos. Por alguma razão a própria palavra filosofia é usada e classificada no seu justo sentido.
Segundo Heraclito, a própria natureza impõe a pesquisa: com efeito ela "gosta de ocultar-se." (fr. 123, Diels). Ele diz que o homem deve examinar-se a si mesmo. "Procurei-me a mim mesmo", diz ele (fr. 101, Diels). A pesquisa interior abre ao homem zonas sucessivas de profundidade, que jamais se esgotam: a razão, a lei última do eu, aparece continuamente mais além, em uma profundidade sempre mais longínqua e ao mesmo tempo sempre mais íntima.
Heraclito põe constantemente defronte do homem a alternativa entre o estar acordado e o dormir: entre o abrir-se, mediante a pesquisa, à comunicação inter-humana, que revela a realidade autêntica do mundo objectivo: e o fechar-se no próprio pensamento isolado, num mundo fictício que não tem comunicação com os outros (fr. 2, 34, 73; 89).
Nestas afirmações está contido o ensinamento fundamental de Heraclito, de cujo ensinamento ele deduz que os homens não podem elevar-se senão por meio de uma longa pesquisa "Os homens não sabem como o que é discorde está em acordo consigo mesmo: harmonia de tensões opostas, como as do arco e da lira" (fr. 51).
A harmonia não é para Heraclito a síntese dos opostos, a conciliação e o anulamento das suas oposições; é antes a unidade que submete precisamente as oposições e a torna possível. A Homero, que dissera: "Possa a discórdia desaparecer de entre os deuses e de entre os homens", Heraclito replica: "Homero não se apercebe que pede a destruição do universo; se a sua prece fosse atendida, todas as coisas pereceriam" (Diels, A22): A tensão é uma unidade (isto é, uma relação) que pode encontrar-se somente entre coisas opostas enquanto opostas. A conciliação, a síntese anulá-la-iam. Unidade própria do mundo é, segundo Heraclito, uma tensão deste género: não anula nem concilia nem supera o contraste, mas fá-lo existir, e fá-lo compreender, como contraste.