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[3ª Série] Filosofia: Nicolau Maquiavel e "O Príncipe"

domingo, 27 de abril de 2014


Filosofia Política - Nicolau Maquiavel e “O Príncipe”


Desde o início do século XV, em certas regiões da Europa, as antigas cidades do Império Romano e as novas cidades surgidas dos burgos medievais entram em desenvolvimento econômico e social. Grandes rotas comerciais tomam poderosas as corporações e as famílias de comerciantes enquanto o poderio agrário dos barões comerciantes, enquanto o poderio agrário dos barões começa a diminuir.

As cidades estão iniciando o que viria a ser conhecido como capitalismo comercial ou mercantil. Para desenvolvê-lo, não podem continuar submetidas aos padrões, às regras e aos tributos da economia feudal agrária e iniciam lutas por franquias econômicas. As lutas econômicas da burguesia nascente contra a nobreza feudal prosseguem sob a forma de reivindicações políticas: as cidades desejam independência diante dos barões, reis, papas e imperadores.

Na Itália, a redescoberta das obras de pensadores, artistas e técnicos da cultura greco-romana, particularmente das antigas teorias políticas, suscita um ideal político novo: o da liberdade republicana contra o poder teológico-político de papas e imperadores.

Estamos no período conhecido como Renascimento, no qual se espera reencontrar o pensamento, as artes, a ética, as técnicas e a política existentes antes que o saber tivesse sido considerado privilégio da Igreja e os teólogos houvessem adquirido autoridade para decidir o que poderia e o que não poderia ser pensado, dito e feito.

Filósofos, historiadores, dramaturgos, retóricas, tratados de medicina, biologia, arquitetura, matemática, enfim, tudo o que fora criado pela cultura antiga é lido, traduzido, comentado e aplicado. Esparta, Atenas e Roma são tornadas como exemplos da liberdade republicana. Imitá-las é valorizar a prática política, a vita activa, contra o ideal da vida espiritual contemplativa imposto pela Igreja. Falam-se, agora, na liberdade republicana e na vida política como as formas mais altas da dignidade humana. Nesse ambiente, entre 1513 e 1514, em Florença, é escrita a obra que inaugura o pensamento político moderno: O príncipe, de Maquiavel.

Antes de O Príncipe

Embora diferentes e, muitas vezes, contrárias, as obras políticas medievais e renascentistas operam num mundo cristão. Isso significa que, para todas elas, a relação entre política e religião é um dado de que não podem escapar. É verdade que as teorias medievais são teocráticas, enquanto as renascentistas procuram evitar a ideia de que o poder seria uma graça ou um favor divino; no entanto, embora recusem a teocracia, não podem recusar outra ideia qual seja, a de que o poder político só é legítimo se for justo e só será justo se estiver de acordo com a vontade de Deus e a Providência divina. Assim, elementos de teologia continuam presentes nas formulações teóricas da política.

Se deixarmos de lado as diferenças entre medievais e renascentistas e considerarmos suas obras políticas como cristãs, poderemos perceber certos traços comuns a todas elas:

1. Encontram para a política um fundamento anterior e exterior à própria política. Em outras palavras, para alguns, o fundamento da política encontra-se em Deus (seja na vontade divina, que doa o poder aos homens, seja na Providência divina, que favorece o poder de alguns homens); para outros, encontra-se na Natureza, isto é, na ordem natural, que fez o homem um ser naturalmente político; e, para alguns, encontra-se na razão, isto é, na ideia de que existe uma racionalidade que governa o mundo e os homens, torna-os racionais e os faz instituir a vida política. Há, pois, algo - Deus, Natureza ou razão - anterior e exterior à política, servindo de fundamento a ela;

2. Afirmam que a política é instituição de uma comunidade una e indivisa, cuja finalidade é realizar o bem comum ou justiça. A boa política é feita pela boa comunidade harmoniosa, pacífica e ordeira. Lutas, conflitos e divisões são vistos como perigos, frutos de homens perversos e sediciosos, que devem a qualquer preço, ser afastados da comunidade e do poder;

3. Assentam a boa comunidade e a boa política na figura do bom governo, isto é, no príncipe virtuoso e racional, portador da justiça, da harmonia e da indivisão da comunidade;

4. Classificam os regimes políticos em justos-legítimos e injustos-ilegítimos, colocando a monarquia e a aristocracia hereditárias entre os primeiros e identificando com o os segundos o poder obtido por conquista e usurpação, denominando-o tirânico. Este é considerado antinatural, irracional, contrário à vontade de Deus e à justiça, obra de um governante vicioso e perverso.

Em relação à tradição do pensamento político, a obra de Maquiavel é demolidora e revolucionária.

Maquiavélico, maquiavelismo

Estas expressões são usadas quando alguém deseja referir-se tanto à política como aos políticos, e a certas atitudes das pessoas, mesmo quando não ligadas diretamente a uma ação política (fala-se, por exemplo, num comerciante maquiavélico, numa professora maquiavélica, no maquiavelismo de certos jornais, etc.,).

Falamos num "poder maquiavélico" para nos referirmos a um poder que age secretamente nos bastidores, mantendo suas intenções e finalidades desconhecidas para os cidadãos; que afirma que os fins justificam os meios e usa meios imorais, violentos e perversos para conseguir o que quer; que dá as regras do jogo, mas fica às escondidas, esperando que os jogadores causem a si mesmos sua própria ruína e destruição.

Maquiavélico e maquiavelismo fazem pensar em alguém extremamente poderoso e perverso, sedutor e enganador, que sabe levar as pessoas a fazer exatamente o que ele deseja, mesmo que sejam aniquiladas por isso. Como se nota, maquiavélico e maquiavelismo correspondem àquilo que, em nossa cultura, é considerado diabólico. Que teria escrito Maquiavel para que gente que nunca leu sua obra e que nem mesmo sabe que existiu, um dia, em Florença, uma pessoa com esse nome, fale em maquiavélico e maquiavelismo?

A revolução maquiaveliana

Diferentemente dos teólogos, que partiam da Bíblia e do Direito Romano para formular teorias políticas, e diferentemente dos contemporâneos renascentistas, que partiam das obras dos filósofos clássicos para construir suas teorias políticas, Maquiavel parte da experiência real de seu tempo. Foi diplomata e conselheiro dos governantes de Florença, viu as lutas europeias de centralização monárquica (França, Inglaterra, Espanha, Portugal), viu a ascensão da burguesia comercial das grandes cidades e sobretudo via a fragmentação da Itália, dividida em reinos, ducados, repúblicas e Igreja.

A compreensão dessas experiências históricas e a interpretação do sentido delas o conduziram à ideia de que uma nova concepção da sociedade e da política tornara-se necessária, sobretudo para a Itália e para Florença. Sua obra funda o pensamento político moderno porque busca oferecer respostas novas a uma situação histórica nova, que seus contemporâneos tentavam compreender lendo os autores antigos, deixando escapar a observação dos acontecimentos que ocorriam diante de seus olhos.

Se compararmos o pensamento político de Maquiavel com os quatro pontos nos quais resumimos a tradição política, observaremos por onde passa a ruptura maquiaveliana:

1. Maquiavel não admite um fundamento anterior e exterior à política (Deus, Natureza ou razão). Toda Cidade, diz ele em O príncipe, está originariamente dividida por dois desejos opostos: o desejo dos grandes de oprimir e comandar e o desejo do povo de não ser oprimido nem comandado. Essa divisão evidencia que a Cidade não é uma comunidade homogênea nascida da vontade divina, da ordem natural ou da razão humana. Na realidade, a Cidade é tecida por lutas internas que a obrigam a instituir um polo superior que possa unificá-la e dar-lhe identidade. Esse polo é o poder político. Assim, a política nasce das lutas sociais e é obra da própria sociedade para dar a si mesma unidade e identidade. A política resulta da ação social a partir das divisões sociais;

2. Maquiavel não aceita a ideia da boa comunidade política constituída para o bem comum e a justiça. Como vimos, o ponto de partida da política para ele é a divisão social entre os grandes e o povo. A sociedade é originariamente dividida e jamais pode ser vista como uma comunidade una, indivisa, homogênea, voltada para o bem comum. Essa imagem da unidade e da indivisão, diz Maquiavel, é uma máscara com que os grandes recobrem a realidade social para enganar, oprimir e comandar o povo, como se os interesses dos grandes e dos populares fossem os mesmos e todos fossem irmãos e iguais numa bela comunidade. A finalidade da política não é, como diziam os pensadores gregos, romanos e cristãos, a justiça e o bem comum, mas, como sempre souberam os políticos, a tomada e manutenção do poder. O verdadeiro príncipe é aquele que sabe tomar e conservar o poder e que, para isso, jamais deve aliar-se aos grandes, pois estes são seus rivais e querem o poder para si, mas deve aliar-se ao povo, que espera do governante a imposição de limites ao desejo de opressão e mando dos grandes. A política não é a lógica racional da justiça e da ética, mas a lógica da força transformada em lógica do poder e da lei;

3. Maquiavel recusa a figura do bom governo encarnada no príncipe virtuoso, portador das virtudes cristãs, das virtudes morais e das virtudes principescas. O príncipe precisa ter virtú, mas esta é propriamente política, referindo-se às qualidades do dirigente para tomai, e manter o poder, mesmo que para isso deva usar a violência, a mentira, a astúcia e a força. A tradição afirmava que o governante devia ser amado e respeitado pelos governados. Maquiavel afirma que o príncipe não pode ser odiado. Isso significa, em primeiro lugar, que deve ser respeitado e temido - o que só é possível se não for odiado. Significa, em segundo lugar, que não precisa ser amado, por isso o faria um pai para a sociedade e, sabemos, um pai conhece apenas um tipo de poder, o despótico. A virtude política do príncipe aparecerá na qualidade das instituições que souber criar e manter e na capacidade que tiver para enfrentar as ocasiões adversas, isto é, a fortuna ou sorte;

4. Maquiavel não aceita a divisão clássica dos três regimes políticos (monarquia, aristocracia, democracia) e suas formas corruptas ou ilegítimas (tirania, oligarquia, demagogia/anarquia), como não aceita que o regime legítimo seja o hereditário e o ilegítimo, o usurpado por conquista. Qualquer regime político - tenha a forma que tiver e tenha a origem que tiver - poderá ser legítimo ou ilegítimo. O critério de avaliação, ou o valor que mede a legitimidade e a ilegitimidade, é a liberdade.

Todo regime político em que o poderio de opressão e comando dos grandes é maior do que o poder do príncipe e esmaga o povo é ilegítimo; caso contrário, é legítimo. Assim, legitimidade e ilegitimidade dependem do modo como as lutas sociais encontram respostas políticas capazes de garantir o único princípio que rege a política: o poder do príncipe deve ser superior ao dos grandes e estar a serviço do povo.

O príncipe pode ser monarca hereditário ou por conquista; pode ser todo um povo que conquista, pela força, o poder. Qualquer desses regimes políticos será legítimo se for se for uma república e não despotismo ou tirania, isto é, só é legítimo o regime no qual o poder não está a serviço dos desejos e interesses de um particular ou de um grupo de particulares.

O príncipe virtuoso

A tradição grega tornou ética e política inseparáveis, a tradição romana colocou nessa identidade da ética e da política na pessoa virtuosa do governante e a tradição cristã transformou a pessoa política num corpo místico sacralizado que encarnava a vontade de Deus e a comunidade humana. Hereditariedade, personalidade e virtude formavam o centro da política, orientada pela ideia de justiça e bem comum. Esse conjunto de ideias e imagens é demolido por Maquiavel. Um dos aspectos da concepção maquiaveliana que melhor revela essa demolição encontra-se na figura do príncipe virtuoso.

Maquiavel retoma essa oposição, mas lhe imprime um sentido Inteiramente novo. A virtú do príncipe não consiste num conjunto fixo de qualidades morais que ele oporá à fortuna, lutando contra ela. A virtú é a capacidade do príncipe para ser flexível às circunstâncias, mudando com elas para agarrar e dominar a fortuna. Em outras palavras, um príncipe que agir sempre da mesma maneira e de acordo com os mesmos princípios em todas as circunstâncias fracassará e não terá virtú alguma.

Para ser senhor da sorte ou das circunstâncias, deve mudar com elas e, como elas, ser volúvel e inconstante, pois somente assim saberá agarrá-las e vencê-las. Em certas circunstâncias, deverá ser cruel, em outras, generoso; em certas ocasiões deverá mentir, em outras, ser honrado; em certos momentos, deverá ceder à vontade dos outros, em alguns, ser inflexível.

O ethos ou caráter do príncipe deve variar com as circunstâncias, para que sempre seja senhor delas.

Maquiavel introduz a virtude política como astúcia e capacidade para adaptar-se às circunstâncias e aos tempos, como ousadia para agarrar a boa ocasião e força para não ser arrastado pelas más.

A lógica política nada tem a ver com as virtudes éticas dos indivíduos em sua vida privada. O que poderia ser imoral do ponto de vista da ética privada pode ser virtú política. Em outras palavras, Maquiavel inaugura a ideia de valores políticos medidos pela eficácia prática e pela utilidade social, afastados dos padrões que regulam a moralidade privada dos indivíduos. O ethos político e o ethos moral são diferentes e não há fraqueza política maior do que o moralismo que mascara a lógica real do poder.

Por ter inaugurado a teoria moderna da lógica do poder como independente da religião, da ética e da ordem natural, Maquiavel só poderia ter sido visto como maquiavélico. As palavras maquiavélico e maquiavelismo, criadas no século XVI e conservadas até hoje, exprimem o medo que se tem da política quando esta é simplesmente política, isto é, sem as máscaras da religião, da moral, da razão e da Natureza.

Para o Ocidente cristão do século XVI, O Príncipe maquiaveliano, não sendo o bom governo sob Deus e a razão, só poderia ser diabólico. A sacralização do poder, feita pela teologia política, só poderia opor-se a demonização. É essa imagem satânica da política como ação social puramente humana que os termos maquiavélico e maquiavelismo designam.

CHAUÍ, Marilena. Marilena Chauí, Ed. Ática, ano 2000, SP, pág. 200-204.


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