Profª de Filosofia e Sociologia da Rede Estadual de Goiás desde 2010.
"Quem educa com carinho e seriedade, educa para sempre".
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[2ª e 3ª Série] Filosofia: O Mito do Destino das Almas - Fédon, de Platão

sexta-feira, 24 de agosto de 2012


Mito do destino final das almas

Fonte

O que contam é o seguinte: ou morrer alguém, o demônio que em vida lhe tocou por sorte se encarrega de levá-lo a um lugar em que se reúnem os mortos para serem julgados e de onde são conduzidos para o Hades com guias incumbidos de indicar-lhes o caminho. Depois de terem o destino merecido e de lá permanecerem o tempo indispensável, outro guia os traz de volta, após numerosos e longos períodos de tempo.
Esse caminho não é o que diz Télefo, de Ésquilo, ao afirmar que o caminho do Hades é simples; a meu ver nem é simples nem único. Se fosse o caso, seria dispensável guia, pois ninguém se perde onde a estrada é uma só. O que parece é que ele é cheio de voltas e bifurcações. Digo isso com base nos ritos sagrados e cerimônias aqui em uso.
De qualquer forma, a alma prudente e moderada acompanha seu guia, perfeitamente consciente do que se passa com ela; mas, como disse há pouco, a que se agarra avidamente ao corpo esvoaça durante muito tempo em torno dele e do mundo visível, e depois de grande relutância e de sofrimentos sem conta, é por fim arrastada dali, à força e com dificuldade pelo demônio incumbido de conduzi-la.
Uma vez alcançado o lugar em que se encontram, outras almas, a que se acha impura pela prática do mal, de homicídios injustos ou de crimes semelhantes, irmãos daqueles e iguais aos que soem praticar almas irmãs, de umas alma como essa todas se afastam, evitam-na, não havendo guia nem companheiro de jornada que com ela se associe.
Tomada de grande perplexidade, vagueia por todos os lugares até escoar-se certo tempo, depois do que a arrasta a Necessidade para a moradia que lhe foi determinada. A que atravessou a vida com pureza e moderação e alcançou deuses por guias e companheiros de jornada, obtém moradia apropriada.

Cosmologia e geografia gerais

A Terra apresenta um sem-número de lugares maravilhosos, não sendo nem de tão extensa nem da forma como a imaginam as que se comprazem em discorrer a seu respeito, conforme alguém mo demonstrou.
Nessa altura falou Símias: Que queres dizer com isso, Sócrates? Sobre a Terra eu também já ouvi dizerem muita coisa; porém não o de que te mostras convencido. De muito bom grado te ouviria falar a esse respeito.
Para fazer essa descrição, Símias, não me parece necessária a arte de Glauco. Mas o que se me afigura mais difícil do que a arte de Glauco é provar a sua veracidade. É possível, até, que me falte capacidade para tanto; porém mesmo que a tivesse, o pouquinho de vida que me resta, Símias, não chegaria para tão longa exposição. Contudo não vejo impedimento em expor-te a ideia que faço da forma da Terra e de suas diferentes regiões.
Será o suficiente, falou Símias.
Para começar, principiou, fiquei convencido de que, se a Terra é de forma esférica e está colocada no meio do céu, para não cair não precisará nem de ar nem de qualquer outra necessidade da mesma natureza: por que para sustentar-se é suficiente a perfeita uniformidade do céu e seu equilíbrio natural. Pois uma coisa em equilíbrio natural. Pois uma coisa em equilíbrio no meio de qualquer elemento homogêneo, não se inclinará, no mínimo, para nenhum lado, mas se conservará sempre fixa e no mesmo estado. Foi esse o primeiro ponto, arrematou, que passei a admitir.
E com razão, observou Símias.
Ao depois, continuou, que também se trata de algo imensamente grande e que nós outros, moradores da região que vai do Fásis às Colunas da Hércules, ocupamos uma porção insignificante da terra, em torno do mar à feição de formigas e rãs na beira de um charco. É que por toda a Terra há muitas concavidades, de forma e tamanho variáveis, para as quais converge água, vapor e ar. Porém a própria terra se acha pura no céu puro, onde estão os astros, denominado éter por quantos costumam discorrer sobre essas questões, cuja borra, precisamente, é tudo aquilo que não pára de depositar-se nas cavidades da terra.
Quanto a nós, por não percebemos que moramos nessas concavidades, imaginamos viver em cima da Terra como se daria com quem morasse no meio do mar fundo e pensasse estar na superfície, e vendo através da água o Sol e os outros astros, tomaria o mar pelo céu. Por indolência e fraqueza muito próprias, nunca subiu até o espelho da água, nem viu nunca, depois de emergir do mar e de levantar a cabeça fora da água na direção desses lugares, quanto são mais puros e mais lindos do que o outro, o que também não poderia ter ouvido de nenhuma testemunha ocular. É exatamente o que se dá conosco. Habitantes de uma dessa concavidades da Terra, imaginamos morar em cima dela, e damos ao ar o nome de céu, como se o ar fosse o próprio céu em que se movimentam os astros. É igualzinha nossa situação: por indolência e fraqueza, não somos capazes de atingir o limite extremo do ar. Pois no caso de chegar alguém ao cimo ou de adquirir asas e de voar, emergiria e passaria a ver como os peixes aqui de baixo quando põem a cabeça fora da água e veem o que se passa entre nós: de igual modo veria o que há por lá, e no caso de aguentar sua natureza por algum tempo semelhante vista, reconheceria ser aquele o verdadeiro céu, a verdadeira luz e a verdadeira terra. Sim, porque esta nossa terra, as pedras e toda a região que nos circunda estão estragadas e corroídas, tal como corroído está pela salsugem tudo o que há no mar. Nada cresce no mar digno de menção, nem há nada perfeito, por assim dizer; apenas cavernas, areia, lama a perder de vista e lodo por onde quer que haja terra, nada, em suma, que suporte cotejo com as coisas belas de nosso mundo. Mas aquelas, por sua vez, em confronto com as nossas, de muito as ultrapassam.

A terra superior

Se fosse oportuno, contar-vos-ia um belo mito, Símias, digno de ser ouvido, de como é constituída essa terra situada embaixo do céu.
Mas nem há dúvida, Sócrates, falou Símias; escutaremos teu mito com o maior prazer.
O que dizem, companheiro, para começar, é que essa terra fosse vista de cima por alguém, pareceria um desses balões de couro de doze peças de cores diferentes, de que são simples amostras as cores conhecidas entre nós que os pintores empregam. Toda aquela terra é assim, porém de cores muito mais pura e brilhantes; uma parte é de cor é púrpura e admiravelmente bela; outra é dourada; outra, ainda, com ser branca, é mais alva do que o giz e a neve, o mesmo acontecendo com todas as cores de que é feita, em muito maior número e mais belas do que quantas possamos já ter visto. Pois até mesmo as concavidades da terra, estando cheias de ar e de água, mostram uma cor de brilho especial, resultante da mistura de todas as cores, de forma que a Terra apresenta colorido de uniforme variedade.
Nessa terra assim constituída, tudo cresce nas mesmas proporções: árvores, flores ou frutos. Comas montanhas dá-se o mesmo; as pedras, relativamente, são mais macias e translúcidas e de cores muito lindas, das quais são parcela insignificante nossas pedrazinhas tão apreciadas: sardônicas, jaspe e esmeraldas, e todas as outras da mesma natureza. As de lá são todas desse jeito e ainda mais belas. A causa disso, vamos encontrá-la no fato de serem puras aquelas pedras e não ficarem estragadas nem corroídas, como as nossas, pela putrefação e pala salsugem que convergem para os lugares cá de baixo e que deformam e deixam doente não somente as pedras e o solo, como também os animais e as plantas. Tudo isso enfeita aquela terra, também ouro e prata e o que mais houver do mesmo gênero, de tanta refulgência tudo em tão grande cópia espalhado pela vastidão da terra ,que sua vista é verdadeiramente edificante.
Existem nela animais em profusão, e também em parte nas margens do ar, como nós moramos nas do mar, em parte nas ilhas cercadas de ar, perto dos continentes. Numa palavra: o ar para eles é com a água e o mar para nossas necessidades, assim como para eles o éter é o que para nós é o ar. As estações entre eles são de tal modo temperadas, que ninguém cai doente, vivendo todos muito mais tempo do que os homens cá de baixo.
Quanto à vista, o ouvido o pensamento e demais atributos desse gênero, eles nos ultrapassam na mesma proporção em que o ar vence em pureza a água e o éter o próprio ar. Há também entre eles templos e bosques sagrados, nos quais viver efetivamente as divindades, bem como vozes, profecias e aparições dos deuses, que é como se comunicam com eles, de rosto a rosto. Ademais, veem o sol, a lua e as estrelas com são na realidade, andando a par com tudo isso o restante de sua bem-aventurança.
Assim é a natureza da terra em seu conjunto e das coisas que a circundam.

Geografia infernal

Nas entranhas da terra, por todo o seu contorno notam-se numerosas concavidades, algumas mais profundas e patentes do que esta em que moramos, outras também profundas, porém com entrada mais angusta do que a nossa, havendo, ainda, umas tantas de menor fundura, porém mais largas do que esta.
Todas essas regiões se comunicam entre si em muitos lugares por passagens subterrâneas, de largura variável, além de possuírem outras vias de acesso. Muita água corre de uma para outra, como nos grandes vasos, havendo, outrossim, embaixo da terra rios perenes de grandeza descomunal, de água quente e fria, e também muito fogo e grandes rios de fogo, bem como correntes de lama líquida, ora mais limpa, ora mais suja, tal como antes de lava os rios de lama da Sicília, e depois a própria lava. Essas diferentes regiões se enchem de semelhante matéria, de acordo com a direção ocasional da corrente. Essas águas se movimentam para cima e para baixo, como um pêndulo colocado no interior da terra. Semelhante oscilação deve provir do seguinte: Entre as aberturas da terra, uma há particularmente grande, que a atravessa em toda a sua extensão e a que se refere Homero nos seguintes termos:

Essa voragem profunda que em baixo da terra se encontra, e que por ele mesmo e muitos outros poetas é denominada Tártaro. É para essa abertura que confluem todos os rios, como é dela, também, que todos partem, adquirindo cada um as propriedades do terreno por onde passam. A razão de saírem de todos os rios dessa abertura e de voltarem para ela, é carecerem suas águas de fundo e de base; daí oscilarem e flutuarem para cima e para baixo. Concorrem para o mesmo efeito o ar e o vento que as envolvem, por acompanhá-las tanto quando se precipitam para as regiões do outro lado da terra como quando se dirigem para o lado de cá. E assim como o sopro de quem respira se encontra em constante movimento, na inspiração e na expiração, do mesmo modo o sopro predominante naquelas regiões, juntamente com as águas, quando entram e quando saem, produz ventos de irresistível violência.
Ao se dirigirem as águas para os lugares que denominamos de baixo, afluem para os leitos das correntes desse lado e os enchem, como nos sistemas de irrigação; quando, inversamente, os abandonam e retornam para cá, voltam a encher os deste lado. Uma vez cheios, correm pelos canais e pela terra, seguindo as vias naturais do solo e passam a formar lagos, mares, rios e fontes. De lá, voltando a mergulhar na terra, depois de uma parte das águas circular por maios número de regiões e mais extensas, enquanto outras fazem trajeto pequeno em menos lugares, lançam-se outra vez no Tártaro, algumas muito mais abaixo do nível em que corriam, outras um pouco menos, conquanto desemboquem todas muito abaixo do ponto de partida. Alguns rios irrompem do lado oposto da saída, outros do mesmo lado; sim, casos há de descreverem um círculo completo: enrolando-se uma ou mais vezes em torno da terra, à feição de serpentes, descem o mais possível para de novo se lançarem no Tártaro. Os rios de ambos os lados podem baixar até o centro, porém não ultrapassá-lo, pois de cada lado a margem desses rios é de aclive acentuado.
Há muitas outras caudais do mais variado aspecto, porém nessa multidão de rios há quatro, particularmente, dos quais o maior e mais afastado do centro, denominado Oceano, circunda a Terra inteira. De fronte deste e em sentido contrário deflui o Aqueronte, que além de atravessar muitas regiões desertas, corre por baixo da terra, até alcançar a Lagoa Aquerúsia, para onde vão as almas da maioria dos mortos, as quais, depois de ali permanecerem o tempo marcado pelo destino, umas mais outras menos, são reenviadas para renascerem em animais. O terceiro rio irrompe dentre os dois primeiros, para lançar-se, perto de sua origem, num lugar amplo e cheio de fogo, onde forma um lago maior do que o nosso mar, de água e lama ferventes. Daí, torvo de tanta lama, descreve um círculo e depois de contornar a terra e atravessar outros lugares, atinge o limite extremo da Lagoa Aquerúsia, sem que suas águas se misturem com as desta. Por fim, depois de muitas voltas sempre dentro da terra lança-se na porção mais baixa do Tártaro. Esse é que tem o nome de Piriflegetonte, cujas lavas jogam partículas incandescentes em diversos pontos da superfície da terra.
Defronte dele, por sua vez, desemboca o quarto rio, a princípio numa região selvática e pavorosa, e, ao que se diz, toda ela de colorido azul escuro, denominada Estígia, sendo chamada Estige a lagoa em que ele vem lançar-se. Depois de nela cair e adquirirem suas águas propriedades terríveis, afunda pela terra, traçando voltas sem conta em sentido contrário às do Piriflegetonte, com o qual vai defrontar-se no lado oposto da lagoa Aquerúsia. Suas águas, também, não se misturam com as outras, vindo ele a desaguar no Tártaro defronte do Piriflegetonte. O nome desse rio, no dizer dos poetas, é Cócito.

Sanções

Sendo essa a disposição natural dos rios, quando os mortos chegam ao local determinado para cada um o seu demônio particular, antes de mais nada são julgados, tanto os que levaram vida bela e santa como os que viveram mal. Os classificados como de procedimento mediano, dirigem-se para o Aqueronte e sobem para as barcas que lhes são destinadas e que os transportam para a lagoa. Aí passam a residir e se purificam, e no caso de haverem cometido alguma falta, cumprem a pena imposta e são absolvidos ou recompensados, de acordo com o mérito de cada um.
Os reconhecidamente incuráveis, por causa da enormidade de seus crimes, roubos de templos, repetidos e graves, homicídios iníquos e contra a lei, e muitos outros do mesmo tipo que se cometem por aí: esses lança-os no Tártaro a sorte merecida, de onde não sairão nunca mais. Os autores de faltas sanáveis, embora graves – seria o caso dos que, num momento de cólera, usaram de violência contra o pai ou a mãe, mas que se arrependeram o resto da vida, ou os que se tornaram homicidas por idênticos motivos – todos terão fatalmente de ser lançados o Tártaro. Porém m ano depois de ali caírem, as ondas jogam os assassinos para o Cócito, e os culpados de violência contra o pai e a mãe para o Piriflegetonte. Arrastados, assim, pela correnteza, quando atingem a Lagoa Aquerúsia, alguns chamam a vozes os que eles mesmos mataram, outros as vítimas de suas violências; e ao acorrerem todos a seus brados, imploram permissão de passar para a lagoa e de serem recebidos. Se conseguem com eles que os atendam, ingressam na lagoa, terminando logo ali seus sofrimentos; caso contrário, são mais uma vez levados para o Tártaro e deste, novamente, para os rios, prolongando-se, dessa forma, o castigo até conseguirem o perdão de suas vítimas.
Essa pena lhes é imposta pelos juízes. Por último, os que são reconhecidos como de vida eminentemente santa, ficam dispensados de permanecer nessas moradas subterrâneas e, como egressos da prisão atingem, as regiões puras e passam a residir na terra. Entre esses, os que já se purificaram suficientemente por meio da filosofia, vivem daí por diante sem corpo e vão para moradias ainda mais belas do que as outras. Desisto de descrevê-las, à uma, por não ser fácil tarefa, à outras, por não dispor agora de tempo para tanto.

Lição do mito

Do que vos expusemos, Símias, precisamos tudo fazer para em vida adquirir virtude e sabedoria, pois bela é a recompensa e infinitamente grande a esperança.
Afirmar, de modo positivo, que tudo seja como acabei de expor, não é próprio de homem sensato; mas que deve ser assim mesmo ou quase assim no que diz respeito a nossas almas e suas moradas, sendo a alma imortal como se nos revelou, é proposição que me parece digna de fé e muito própria para recompensar-nos do risco em que incorremos por aceitá-la como tal. É um belo risco, eis o que precisamos dizer a nós mesmos à guisa da formula de encantamento. Essa é a razão de me ter alongado neste mito.
Confiado nele; é que pode tranquilizar-se com relação a sua alma o homem que passou a vida sem dar o menor apreço aos prazeres do corpo e aos cuidados especiais que este requer, por considerá-los estranhos a si mesmo e capazes de produzir, justamente, o efeito oposto. Todo entregue aos deleites da instrução, com os quais adornava a alma, não como se o fizesse com algo estranho a ela, porém como joias da mais feliz indicação: temperança, justiça, coragem, nobreza e verdade, espera o momento de partir para o Hades quando o destino o convocar. Vós também, Símias e Cebete, acrescentou, e todos os outros, tereis de fazer mais tarde essa viagem, cada um no seu tempo. A mim, porém, para falar como herói trágico, agora mesmo chama-me o destino. Mas esta quase na hora de tomar o banho. Acho melhor fazer isso antes de beber o veneno, para não dar às mulheres o trabalho de lavar o cadáver.
Depois de dizer essas palavras, falou Critão: Está bem, Sócrates; porém que determinações me deixas ou a estes aqui, a respeito de teus filhos, ou o que mais poderemos fazer por amor de ti, que nos fora grato executar?
O que sempre vos digo, Critão, foi a sua resposta; nada tenho a acrescentar: se cuidardes de vós mesmos, tudo o que fizerdes será tanto por amor de mim e dos meus como de todos, ainda mesmo que nada me tivésseis prometido neste momento. Porém no caso de vos descuidardes de vós mesmos e de não orientardes a vida como que no rastro do que vos disse agora e no passado, por mais numerosos e solenes que fossem vossos juramentos neste instante, não avançareis um único passo.
Quanto a isso, respondeu, esforçar-nos-emos para viver dessa maneira. Mas, como devemos sepultar-te?
Como quiserdes, disse; basta que segureis de verdade e que eu não vos escape.
Depois, sorriu de mansinho e disse, olhando para o nosso lado: Não consigo, senhores, convencer Critão de que eu sou o Sócrates que neste momento conversa com ele e comenta seus argumentos; toma-me por quem ele irá ver morto dentro de pouco. Por isso pergunta como deverá sepultar-me. Quanto ao que vos tenho dito tantas vezes, que depois de beber o veneno não ficarei convosco mais irei compartilhar da dita dos bem-aventurados, ele acha que eu só falo assim para tranquilizar-vos e a mim também. Servi-me, pois, de fiador junto de Critão, porém que seja essa fiança o oposto da que ele prestou perante os juízes. Empenhou, então, a palavra em como eu ficaria; por vossa vez, afirmai-lhe, que não ficarei depois de morto, porém sairei daqui e partirei, para que ele se mostre mais paciente e não se aflija tanto por minha causa, quando vir queimarem ou enterrarem meu corpo, no pressuposto de que eu esteja sofrendo enormemente, nem diga nos meus funerais que expõe Sócrates, ou o carrega, ou o sepulta. Fica sabendo, continuou, meu admirável Critão, que a imprecisão da linguagem, além de ser um defeito em si mesma, produz mal às almas. Importa criares coragem e dizer que é meu corpo que vais enterrar; depois sepulta-o como te aprouver e como te parecer mais de acordo com as leis.

Epílogo

Tendo acabado de falar, levantou-se e foi para outro compartimento, a fim de banhar-se. Critão o acompanhou; a nós mandou que esperássemos. Ali ficamos, então, a conversar e comentar tudo o que ele dissera e a discorrer sobre o nosso grande infortúnio. Sentíamos, em verdade, como quem houvesse perdido o pai e tivesse de ficar órfão para o resto da vida. Depois de tomar banho, trouxeram-lhe os filhos – dois ainda eram pequenos; o outro, mais crescido. – Chegaram também as mulheres de casa, com as quais ele conversou na frente de Critão, e depois de lhes haver feito certas recomendações, pediu que retirassem dali as mulheres e os meninos e veio para o nosso lado. O sol já estava quase a desaparecer, pois Sócrates havia ficado lá dentro bastante tempo. Ao vir do banho, sentou-se, porém não conversou muito. Achegou-se-lhe o comissário dos Onze, que lhe disse:
Sócrates, falou, de ti não terei de queixar-me como dos outros, que se zangam comigo e rompem em palavras e pragas, quando os convido a tomar o veneno por determinação superior. No teu caso, pelo contrário, durante todo este tempo e em várias outras oportunidades, pude reconhecer em ti o homem mais nobre, mais delicado e melhor de quantos para aqui têm vindo. Hoje, especialmente, tenho certeza de que não te zangarás comigo, pois sabes muito bem que é dos outros a culpa. E agora, já que ficaste ciente do que vim anunciar-te. Adeus; suporta o inevitável da melhor maneira possível.
E desatando a chorar, deu as costas e retirou-se. Sócrates olhou para ele disse: Adeus, também para ti; faremos isso mesmo.
Depois, voltando-se para o nosso lado: Que homem delicado! Disse. Durante todo este tempo , vinha sempre ver-me e várias vezes conversou comigo. Excelente criatura. Agora mesmo, quanta generosidade revela com esse choro por minha causa! Porém vamos, Critão; obedeçamos-lhe; tragam logo o veneno, se estiver pronto; senão, cuide de prepará-lo o encarregado disso.
Critão observou: O que eu acho, Sócrates, lhe disse, é que o sol ainda está por cima das montanhas; não baixou de todo. Sei também que muitos tomaram o veneno bem depois da intimação e de comerem e beberem à farta; sim, alguns mesmo depois de relações amorosas com que lhe apetecesse. Não te apresses; temos tempo.
E Sócrates: É natural, Critão, assim falou, que esses tais procedessem conforme disseste, por imaginarem que disse lhes adviria alguma vantagem. Mas é também natural não proceder eu dessa maneira, pois não vejo o que posso vir a lucrar em beber o veneno um pouco mais tarde, se não for tornar-me ridículo a meus próprios olhos, por agarrar-me dessa maneira à vida e tentar economizar o que já não existe. Vamos, continuou: obedece-me e só faças o que eu digo.
Ouvindo-o, Critão fez sinal ao menino que se encontrava mais perto. Este saiu e voltou pouco depois em companhia do encarregado de lhe dar o veneno, que já o trazia espremido na taça. Ao ver o homem, Sócrates perguntou-lhe. E agora, meu caro: já que entendes destas coisas, que precisarei fazer?
Nada mais, respondeu, do que andar depois de beber, até sentires peso nas pernas, e em seguidas deitar-te. Assim o veneno atuará.
Depois dessas palavras, estendeu a Sócrates a taça, que a tomou das mãos dele com toda a tranquilidade, sem o menor tremor nem alteração da cor ou das feições. Mirando por baixo o homem, com aquele seu olhar de touro, perguntou-lhe: Que me dizes? E se eu fizesse uma libação com um pouquinho disto aqui? É permitido ou não?
Só preparamos, Sócrates, respondeu, a quantidade que nos parece suficiente.
Compreendo, retrucou. Mas pelo menos é permitido, e até um dever, pedir aos deuses que façam feliz a passagem deste mundo para o outro. É o que peço. Prouvera que me atendam!
Depois de assim falar, levou a taça aos lábios e com toda a naturalidade, sem vacilar um nada, bebeu até à última gota. Até esse momento, quase todos tínhamos conseguido reter as lágrimas; porém quando o vimos beber e que havia bebido tudo, ninguém mais aguentou. Eu também não me contive: chorei à lágrima viva. Cobrindo a cabeça, lastimei o meu infortúnio; sim, não era por desgraça que eu chorava, mas a minha própria sorte, por ver de que espécie de amigo me veria privado. Critão levantou-se antes de mim, por não poder reter as lágrimas. Apolodoro, que desde o começo não havia parado de chorar, pôs se a urrar, comovendo seu pranto e lamentações até o íntimo todos os presentes, com exceção do próprio Sócrates.
Que é isso, gente incompreensível? Perguntou. Mandei sair as mulheres, para evitar esses exageros. Sempre soube que só se deve morrer com palavras de bom agouro. Acalmai-vos! Sede homens!
Ouvindo-o falar dessa maneira, sentimo-nos envergonhados e paramos de chorar. E ele, sem deixar de andar, ao sentir as pernas pesadas, deitou-se de costas, como recomendara o homem do veneno. Este, a intervalos, apalpava-lhe os pés e as pernas. Depois, apertando com mais força os pés, perguntou se sentia alguma coisa. Respondeu que não. De seguida, sem deixar de comprimir-lhe a perna, do artelho para cima, mostrou-nos que começava a ficar frio e a enrijecer. Apalpando-o mais uma vez, declarou-nos que no momento em que aquilo chegasse ao coração, ele partiria. Já se lhe tinha esfriado quase todo o baixo-ventre, quando, descobrindo o rosto – pois o havia tapado antes – disse, e foram suas últimas palavras: Critão, exclamou, devemos um galo a Asclépio. Não te esqueças de saldar essa dívida!
Assim farei, respondeu Critão, vê se queres dizer mais alguma coisa.
A essa pergunta, já não respondeu. Decorrido mais algum tempo, deu um estremeção. O homem o descobriu; tinha o olhar parado. Percebendo isso, Critão fechou-lhe os olhos e a boca.
Tal foi o fim do nosso amigo, Equécrates, do homem, podemos afirmá-lo, que entre todos os que nos foi dado conhecer, era o melhor e também o mais sábio e mais justo.

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